domingo, 20 de julho de 2008

Artigo: Sociedade de risco e as lesões ao feto

Como conseqüência do desenvolvimento tecnológico, científico, industrial e econômico da sociedade, verifica-se uma pluralidade de atividades aptas a originar novos riscos. Esses riscos, sob a ótica de que a vida social sem riscos é impensável, são geralmente tidos como efeitos secundários não desejados e não são, a princípio, substratos dos riscos naturais, mas sim dos artificiais, pois se desenvolvem por meio de decisões e atividades relativas à tecnologia humana.

Nota-se que a transição para o período pós-industrial (ou de risco) ocorre de modo involuntário no contexto da dinâmica da modernização. A denominada sociedade de risco não é uma opção a ser escolhida ou rejeitada politicamente. Ela surge da continuidade dos processos de desenvolvimento social, que não prestam maior atenção aos próprios efeitos, de maneira que acabam por fazer questionar e, até mesmo, destruir bases sociais da sociedade industrial.

O termo “risco”, utilizado no contexto pós-industrial, é assim definido por Raffaele de Giorgi: “O risco não é nem uma condição existencial do homem, muito menos uma categoria ontológica da sociedade moderna, e tampouco o resultado perverso do trabalho da característica das decisões, uma modalidade da construção de estruturas através do necessário tratamento das contingências. É uma modalidade da relação com o futuro: é uma forma de determinação das indeterminações segundo a diferença de probabilidade/improbabilidade”(1).

Segundo U. Beck, na modernidade avançada, a produção social de riqueza vem acompanhada sistematicamente pela produção de riscos, e a principal fonte dessa produção de perigos imprevisíveis são os meios tecnocientíficos, em último termo, a ciência. O desenvolvimento científico, no âmbito de sua natureza, pode conduzir a uma possível destruição da vida na Terra diante da globalidade de sua ameaça para todos os seres vivos. Assevera o autor, ainda, que a sociedade de risco é uma sociedade catastrófica(2). Além disso, a sociedade de risco, pensada até suas últimas conseqüências, quer significar sociedade de risco global, pois seu princípio axial e seus desafios são perigos produzidos pela civilização que não podem ser delimitados socialmente nem no espaço nem no tempo(3).

Dessa forma, a sociedade de risco, diferenciando-se de épocas anteriores pela existência de riscos artificiais, caracteriza-se pelas ações produzidas por vontade e decisão humanas. Esses riscos, numa probabilidade de atingir grandes dimensões, são capazes de alcançar um número indeterminado de pessoas e, diante dessa proporção, há possibilidade de ameaça à própria existência da humanidade.

A sociedade de risco mostra-se, assim, de um lado, com esses diversos avanços, enormemente complexa, e, de outro, caracterizada pela verdadeira quebra de um estado de bem-estar social sempre almejado. Nela, são percebidas inter-relações sociais nunca antes vistas, sendo, pois, notável uma verdadeira sensação social de inseguridade, um dos marcos mais significativos das sociedades da era pós-industrial(4).

Nesse prisma social e jurídico, determinadas questões ganham relevante aspecto. Na tendência moderna, verifica-se a necessidade de proteção penal dos novos interesses e que a política criminal orienta o Direito Penal moderno de que a dogmática clássica não é mais tida como lastro dogmático. Entre essas questões hoje relevantes, como os crimes de perigo e a proteção de interesses difusos, está, também, diante do avanço da medicina, a necessidade de proteção de lesões ao feto. A expansão do Direito Penal é sentida pela criação de novos tipos penais próprios de uma sociedade em fase de avanços tecnológicos. Com essa aceitação ampla de proteção de novos bens jurídicos, corre-se o risco de aceitar o Direito Penal como prima ou sola ratio e não como ultima ratio(5). Assim, o tradicional brocardo “o presente como projeto para o futuro” é, na sociedade de risco, substituído pela fórmula “o futuro como projeto do presente”(6).

Os avanços no conhecimento do genoma humano e as possibilidades de intervenção sobre o meio da engenharia genética, do DNA recombinante, têm estabelecido novas necessidades de proteção dos bens jurídicos implicados. Há a necessidade de, antes de protegê-los, identificá-los, pois os bens jurídicos têm experimentado uma flutuação “enquanto a sua proteção”(7). Nos últimos anos, contudo, vem-se verificando com ênfase a intensificação dessa flutuação, como sucede com a vida e a integridade corporal e psíquica (futura) do concebido, pois, à vista das novas formas hoje existentes, eram, anteriormente, impensáveis ou pareciam de escasso relevo(8).

As amplas possibilidades atuais de acesso ao feto, com fins terapêuticos e não terapêuticos ou de investigação, representam perigos diante dos que subsistiam expostos não somente à vida mas também à integridade física e à saúde do feto e seu desenvolvimento normal, que podem ser gravemente lesionadas pelas diversas ações de intervenção sobre este por meio da mãe. Essas lesões podem dar lugar a graves alterações na formação fetal, as quais serão determinantes de um desenvolvimento anômalo do feto e, uma vez nascido, do padecimento, também, de diversas anomalias em sua integridade física ou saúde enquanto pessoa com vida já independente, além da conseqüência da morte logo após nascer(9).

A fixação do momento em que o ser humano adquire vida independente tem uma enorme importância para o Direito Penal, em razão não somente do distinto alcance da proteção que dispensa o Direito positivo para a vida humana e um ou outro estágio de seu desenvolvimento mas também a respeito da proteção de outros bens jurídicos dos quais o ser humano é portador, especialmente com respeito à integridade física e à saúde(10).

Nesse contexto, caberia questionar se o feto é portador de direito à sua integridade física e à sua saúde, ainda sob o aspecto de vida independente. As características da vida fetal e as valorações que merecem são identicamente aplicáveis à integridade física e à sua saúde. A inviolabilidade do direito à vida, constitucionalmente assegurada, a qual, indiscutivelmente, estende esse direito à vida intra-uterina, até porque todos são iguais perante a lei, determina que a vida do feto é um bem jurídico constitucional, cuja proteção está garantida por esse preceito e, pelas mesmas razões, conclui-se que a integridade física e a saúde do nascituro também são bens jurídicos constitucionais, cuja proteção está inserida nesse mesmo contexto. Isso retrata um direito constitucional fundamental “objetivamente vigente numa ordem jurídica concreta”(11).

A noção de bem jurídico implica a realização de um juízo positivo de valor acerca de determinado objeto ou situação social e de relevância para o desenvolvimento humano. No pensamento democrático, “a eminente dignidade da pessoa humana aparece desenvolvida, numa primeira explicitação, através dos princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade. O primeiro a liberdade traduz a autonomia da razão pessoal existente em cada ser humano e a sua inviolabilidade na regência de sua própria conduta social. Equivale à autodeterminação da pessoa na sociedade. O segundo igualdade reconhece como inerente a todo ser humano a mesma dignidade, atribuindo a todos os mesmos direitos essenciais, independentemente do ofício ou da função social que exerçam; negativamente, proíbe a utilização de certos critérios de diferenciação no tratamento entre as pessoas em qualquer domínio da ordem jurídica. Finalmente, a fraternidade princípio sistematicamente ignorado pelo individualismo afirma o sentido essencialmente dialógico e convivente do ser humano e prescreve a solidariedade de todas as pessoas no gozo das vantagens e na partilha dos riscos produzidos na vida em comunidade”(12).

O conteúdo limitador dos direitos fundamentais assinala a fronteira para que o legislador não o ultrapasse, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade. Isso não implica, no entanto, afirmar que o legislador infraconstitucional não possa fazer opção em criminalizar uma conduta que atente contra um bem jurídico previamente inserido na Constituição, em especial, tratando-se de direito fundamental. Por oportuno, devemos enfatizar alguns limites que o Direito Penal, como instrumento de proteção de bens jurídicos, deve respeitar: a) princípio da adequação dos meios do Direito Penal para uma proteção efetiva de bens jurídicos; b) princípio da utilização do meio relativamente mais grave; c) princípios da intervenção mínima; d) princípio do interesse preponderante que considera ilegítima uma sanção penal que, direta ou indiretamente, provoque maiores danos do que aqueles que pretende evitar. Esses princípios, entre outros, apontam para uma limitação da tutela jurídico-penal e uma aplicação mais correta e racional do Direito Penal(13).

Nesse raciocínio, a integridade física e a saúde do nascituro são direitos fundamentais, numa percepção ampliativa do conceito de vida inserido na Constituição. O preceito normativo constitucional, no entanto, está à disposição e, ainda, por falta de opção do legislador penal, não foram incriminadas condutas que coloquem em risco esse bem jurídico. Atualmente, há um vácuo legislativo, pois o crime contra a integridade física e a saúde pressupõe pessoa com vida independente, não podendo, pois, sob pena de violação do princípio da legalidade, ser aplicado ao nascituro.

No propósito de proteger o feto desses riscos e de preencher uma lacuna existente na legislação, o atual Código Penal espanhol (1995) introduziu novos tipos penais relativos às lesões ao feto (arts. 157 e 158, do Título IV, do Livro II(14)). Trata o primeiro dispositivo de um tipo doloso, enquanto o segundo trata de um tipo culposo. Acentua Gracia Martín que esse bem jurídico encontra assento Constitucional (art. 15 da Constituição espanhola) ao estabelecer que “todos têm direito a vida, a integridade física e moral [...]” e que, com a introdução desses novos delitos, vem, acertadamente, preencher uma lacuna de punibilidade há tempo denunciada pela doutrina, colocando o ordenamento penal espanhol à altura de outros ordenamentos jurídicos(15).

Assevera Romeo Casabona que os bens jurídicos protegidos são a integridade e a saúde física e psíquica do feto, e, em sentido amplo, admitido para este o embrião desde sua implantação e o feto em sentido estrito, de modo paralelo e como sucede com a vida do feto no delito de aborto. Evidentemente, essa proteção visa garantir, em último extremo, a integridade do futuro nascido. A ocorrência de uma lesão ou enfermidade deve se concretar em prejudicar o normal desenvolvimento do feto ou em uma doença física ou psíquica, mas, em todos os casos, há necessidade de ser grave. Estas últimas podem manifestar-se já durante a gravidez ou bem antes do nascimento, com um problema, nesse caso, que não apareçam de maneira imediata, pois o nascido continuará o seu desenvolvimento biológico, inclusive depois de ocorrer aquele, para que se aceite a tipicidade sempre que a relação de causalidade não oferecer qualquer resquício de dúvida(16).

Notas:

(1) DE GIORGI, Raffaele. Direito, democracia e risco: vínculos com o futuro. Tradução de Cristiano Paixão, Daniela Nicola e Samantha Dobrowolski. Porto Alegre: Fabris, 1998. p. 197 e ss.

(2) BECK, Ulrich. La sociedad de riesgo: hacia una nueva modernidad. Tradução de J. Navarro, D. Jiménez e M. Borras. Barcelona: Paidós, 2002. p. 25 e ss.

(3) BECK, Ulrich. La sociedad de riesgo global. Tradução de J. Alborés Rey. Madrid: Siglo XXI, 2002. p. 29.

(4) SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal supra-individual: interesses difusos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 31.

(5) HASSEMER, Winfried. Lineamentos de una teoria personal del bien jurídico. Revista Doctrina Penal: teoria y prática en las ciências penales. Tradução de Patrícia S. Ziffer. Buenos Aires, n.º 46/47, p. 274, abr./set. 1989.

(6) SPOLIDORO, Luiz Cláudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo: Lejus, 1997. p. 116-117.

(7) Ibidem.

(8) ROMEO CASABONA, Carlos Maria. Genética y derecho penal: los delitos de lesiones ao feto y relativos a las manipulaciones genéticas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 4, n.º 16, p. 23 e ss., out./dez. 1996.

(9) DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis; GRACIA MARTÍN, Luis; LAURENZO COPELLO, Patricia. Comentarios al Codigo Penal: parte especial. Valencia: Tirant lo Blanch, 1997. p. 609.

(10) Ibidem. p. 610.

(11) CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 359.

(12) PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 82-83.

(13) Ibidem. p. 101.

(14) Código Penal espanhol: “Art. 157. El que, por cualquier medio o procedimiento, causare en un feto una lesión o enfermedad que prejudique gravemente su normal desarrollo, o provoque en el mismo una grave tara física o psíquica, será castigado con pena de prisión de uno a cuatro años de inhabilitación especial para ejercer cualquier profesión sanitaria, o para prestar servicios de toda índole en clínicas, estabelecimientos o consultorios ginecológicos, públicos o privados, por tiempo de dos a ocho años. Art. 158. El que, por imprudencia grave, cometiere los hechos descritos en el artículo anterior, será castigado con la pena de arresto de siete a veinticuatro fines de semana. Cuando los hechos descritos en el artículo anterior fueren cometidos por imprudencia profesional se impondrá asimismo la pena de inhabilitación especial para el ejercicio de la profesión, oficio o cargo por un período de seis meses a dos años.” La embarazada no será penada a tenor de este precepto.

(15) DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis; GRACIA MARTÍN, Luis; LAURENZO COPELLO, Patricia. Op. cit. p. 608-611.

(16) ROMEO CASABONA, Carlos Maria. Op. cit. p. 37-39.


Por Luís Marcelo Mileo Teodoro é promotor de justiça do Estado de São Paulo, mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e professor de Direito Penal e Legislação Penal Especial na Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus (FDDJ).


O Estado do Paraná, Direito e Justiça.

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