sexta-feira, 25 de julho de 2008

Artigo: A sanção eficaz

É nítida a perplexidade de boa parte da população diante da aparente divergência entre as várias instâncias da Justiça no "prende-e-solta" das últimas semanas. Compreensível o estranhamento, cabe à lucidez e serenidade dos juristas tentar esclarecer o leigo sobre o que realmente acontece.

Uma das características do Direito - esta a sua paradoxal nota típica - é a possibilidade de múltiplas interpretações. O mesmo texto legal comporta várias leituras. Depende de um sem-número de fatores: a concepção filosófica, a ideologia, a orientação política, mas também a história pessoal, as vicissitudes existenciais e até mesmo as idiossincrasias do intérprete.

Não é desarrazoado concluir que todos podem ter razão. Tanto os que acreditam que a prisão se impõe, como providência salutar e necessária à instrução do processo, como os que repudiam o sacrifício da liberdade nessa fase prévia à instauração de uma eventual ação penal.

A Justiça Penal reflete os desafios do Direito Penal contemporâneo. Para que serve o Direito Penal? Ele deve ser a derradeira alternativa ou precisa ser mais utilizado para produzir efeitos pedagógicos? Existem justificativas tanto para o garantismo como para a tolerância zero.

Para a primeira posição, só devem merecer a incidência do Direito Criminal as incursões mais graves à coexistência social. A ordem constitucional trabalha com princípios consistentes como o da presunção da inocência e só depois de julgamento definitivo é que se poderá implementar a força cruel da lei penal.

Para a segunda postura, a devassidão chegou a tal estágio que transigir com o ordenamento destinado à delinqüência seria estimulá-la. Por isso é que não se pode tergiversar com os instrumentos postos à disposição do Estado para compelir a cidadania a uma boa conduta.

Não se chegou a um acordo. Nem se vislumbra consenso a curto prazo. Questões complexas de uma sociedade pluralista não comportam unanimidade. O convívio democrático implica a admissão de divergências.

Algumas reflexões podem ser acrescentadas aos últimos episódios. O fato é que não surpreende mais, neste Brasil da primeira década do século 21, a prisão de cidadãos diferenciados.

A clássica observação de que a prisão seria reservada aos "três Ps" dos excluídos foi desmentida pela atuação da polícia, liberada por um protagonismo judicial da primeira instância. Há quem duvide da eficácia dessa estratégia, atribuindo-a à necessidade de se inverter o foco da opinião pública em outras mazelas.

O fato é que, se a prisão também se abriu para os freqüentadores de outras páginas dos jornais e dos sites de amenidades, ela também parece ter perdido o seu caráter de humilhação. A prisão de personalidades já não constitui estigma, senão oportunidade para que novos astros desfilem pelos noticiários.

Todos os encarceramentos se submetem ao mesmo ritual: são acompanhados pela mídia, faz-se uso das algemas, disfarçadas pelos suéteres, segue-se o peregrinar de visitas para amenizar o curto estágio do segregado em sedes também diferenciadas de segregação.

As prisões são de curta permanência. Sucedem-se as críticas aos métodos, mas os personagens não ficam mais indelevelmente marcados por sua passagem pelos cárceres. Nada que o talento advocatício deixe de enfrentar com galhardia e reconhecido êxito, na linha da análise feita por Carlos Ari Sundfeld na entrevista Quem pode mais usa a Justiça melhor (Estado, 11/7).

A trivialização do espetáculo parece contribuir para amenizar os efeitos da prisão. O assunto mereceu a aguda observação de Luis Fernando Verissimo em sua crônica A alegria do ladrão de galinha (Caderno2, 10/7). Só os infratores de pequeno potencial ofensivo é que ainda festejam a prisão dos "bacanas".

Cabe indagar: essa linha de procedimento é a mais eficaz para reprimir a criminalidade de alto coturno? As operações bombásticas, tão criativamente cognominadas, produzem o resultado para as quais são preordenadas? O formalismo, o ritualismo e o procedimentalismo tanta vez estiolante da Justiça convencional são eficientes para a efetiva imposição das sanções criminais?

Subsiste na comunidade aquela aspiração legítima a que todos respondam por suas condutas. O Estado de Direito, confundido com o Estado sob a lei, consagra a igualdade como direito fundamental. Todos devem idêntica submissão à norma posta como essencial à coexistência ética.

Para não frustrar esse anseio com providências que nem sempre resultam na punição, mas se esvaem nos meandros capilares de um processo de extrema sofisticação, a inteligência das autoridades precisa enfrentar outros desafios. Se é possível prender atores tão distinguidos da vida econômica, política ou social, por que não é possível atuar com a mesma desenvoltura na retomada dos recursos ilicitamente auferidos?

Para quem coloca o dinheiro como objetivo exclusivo de uma curta existência - em algumas décadas todos entrarão para o reino da memória - a única sanção eficaz é a privação do patrimônio. Esta, sim, representaria castigo verdadeiro. O mais - passar algumas horas em celas especiais de repartições públicas, merecer a simpatia de vasta parcela dos que se identificam com o padrão cultural dos presos, figurar como vítimas de arbitrariedades - talvez não corresponda às expectativas nutridas. Seja de quem ordena a prisão, por ainda acreditar na privação da liberdade como única retribuição para o infrator, seja daqueles que esperam que a Justiça seja única e idêntica para todos os brasileiros.

Por José Renato Nalini, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, é presidente da Academia Paulista de Letras


Estadão.

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