quinta-feira, 3 de julho de 2008

Artigo: Onde está a igualdade? Pederastia no CPM

Não, nem todos são iguais perante a lei. O Código Penal Militar é um paradigmático exemplo de lei em que o art. 5º da CF é menosprezado. Chega-se a essa conclusão com a leitura do seu preconceituoso art. 235, que dispõe ser crime o ato de praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar. A esse delito o CPM atribui o nome pederastia ou outro ato de libidinagem. De acordo com o Grande Dicionário Etimológico Prosódico da Língua Portuguesa de Silveira Bueno, pederasta é aquele que mantém relações sexuais com indivíduos do mesmo sexo. A palavra pederastia deriva do grego paiderastès, de pais, paidòs, menino e erastès, amante. Designava, na antiguidade grega, a educação dos adolescentes do sexo masculino de famílias com boa posição social por parte de mestres. Ainda que essa educação não implicasse, automaticamente, a ocorrência de práticas sexuais, com freqüência a relação de amizade entre mestre e educando cedia lugar para uma relação amorosa. Daí que pederastia tenha assumido o significado de atração sexual de um homem adulto por adolescentes do sexo masculino. Por extensão, a maioria dos dicionários da atualidade identifica pederastia com a homossexualidade masculina.

Voltemos ao art. 235 do CPM. O que se condena, com esse tipo penal, é a prática consensual de ato de libidinagem nas dependências militares. Note-se que a conduta punida prescinde de violência, constrangimento, ameaça. O que se busca, portanto, é a manutenção da ordem nos quartéis, do chamado pundonor militar. O Código em vigor é de 1969. O anterior, de 1944, era, creia-se, bastante mais sensato. Afinal, punia igualmente a prática de ato libidinoso em local considerado militar, com o intuito de manter íntegras a disciplina e a hierarquia que sabidamente regem o militarismo. Mas a diferença entre a redação do CPM de 1944 e aquela do Código que está em vigor reside no fato de que o primeiro não mencionava a palavra pederastia e tampouco continha no seio da redação típica a expressão homossexual ou não. O Código atual é preconceituoso. Quer afastar toda atividade libidinosa dos locais sujeitos à administração militar, mas o faz mencionando expressa e intencionalmente as práticas pederastas e homossexuais, como a evidenciar a especial aversão do legislador aos homoafetivos. Ressalte-se que as práticas homoafetivas femininas não são expressamente mencionadas, mas nem poderia ser diferente: com exceção da Polícia Militar do Estado de São Paulo, que passou a admitir mulheres a partir de 1955, a existência de policiais femininas só foi regulamentada para todo Brasil em 1977. E o ingresso de mulheres na carreira militar-naval em 1980 foi o evento pioneiro das Forças Armadas nesse sentido.

A Exposição de Motivos do Código de 1969 estampa com muita clareza o preconceito e bem demonstra que o que se objetivava era, sobretudo, afastar, da vida militar, as práticas homossexuais. Assim é que, referindo-se à pederastia, o item 17 da Exposição de Motivos explica que a nova figura “é a maneira de tornar mais severa a repressão contra o mal”. Considerando que o delito já existia no diploma legal anterior e que a carga extra de severidade mencionada na Exposição de Motivos foi trazida pelo acréscimo das expressões “pederastia” e “homossexual ou não”, logo se percebe que, para o legislador, o mal a ser combatido são as condutas homoafetivas.

Ora, se os vocábulos acrescentados pelo CPM de 1969 apenas servem para demonstrar maior repúdio a atos libidinosos praticados por pessoas que têm parceiros do mesmo sexo, pode-se afirmar que esse diploma legal vai de encontro ao basilar princípio constitucional da igualdade. Mais de uma ADIN foi interposta no STF com o objetivo de modificar o texto legal. A ADIN 3299-2 teve o seu conhecimento negado pelo ministro Carlos Velloso, que explicou que, por ser o CPM anterior à CF, não há que se falar em inconstitucionalidade superveniente, mas sim em revogação da lei. Mas nesse caso específico, apenas a revogação expressa das expressões do art. 235 do CPM que ofendem o art. 3º, inc. IV e o art. 5º, ambos da CF, corrigiria o anacronismo e a antipatia da lei.

Este é, justamente, o objetivo do Projeto de Lei 2.773/00, do deputado Alceste de Almeida, do PMDB de Roraima. Um projeto de lei mais recente, de nº 6.871/2006, da deputada Laura Carneiro, do PFL do Rio de Janeiro, pretende, além de proceder às já elencadas supressões textuais, acrescentar um parágrafo único ao art. 235. O parágrafo excepcionaria a prática de ato libidinoso consensual praticado entre cônjuges ou unidos estavelmente em imóvel ou aposento sujeito à administração militar destinado e ocupado exclusivamente a título de residência permanente, moradia transitória ou hospedagem. Os dois projetos foram apensados e estão sujeitos à tramitação ordinária.

O legislador racional, de que fala Tercio Sampaio Ferraz Jr., é, entre outras coisas, econômico — não usa palavras supér­fluas, não é redundante — e operativo — todas suas normas e palavras são úteis.(1) Quando tentamos nos valer dessa construção dogmática do legislador racional para interpretar o art. 235 do CPM, chegamos à inafastável conclusão de que o legislador do CPM estava dotado de muitas das propriedades elencadas por Santiago Nino e retomadas por Tercio Sampaio, mas definitivamente não estava dotado de justiça: o legislador do CPM pode ser considerado singular, permanente, único, consciente, finalista, onisciente, onipotente, coerente, onicompreensivo, preciso, e, sem dúvidas, econômico e operativo.(2) Afinal, as expressões pederastia e homossexual ou não foram úteis e necessárias para mostrar o seu repúdio à presença de pessoas homoafetivas na atividade militar. Mas pela utilização mesma dos referidos vocábulos é que não pode ele ser considerado um legislador justo. Sabe-se que a construção dogmática do legislador racional não se confunde com o legislador real, mas é interessante a comparação dos atributos para que tenhamos idéia de quanto nossos legisladores se afastam daquilo que seria o ideal.

A vida em caserna costuma envolver intenso convívio entre as pessoas, no mais das vezes por longos períodos. Alega-se, então, que para o bom andamento da vida em dependências militares é necessária uma regulação apta a frear os impulsos e desejos sexuais, normais em qualquer indivíduo. Quanto a isso, pouca margem de discussão existe. Mas os desejos libidinosos estão presentes nas pessoas independentemente de suas preferências sexuais. Assim, se por um lado é bastante razoável que o legislador esteja preocupado com a disciplina nos quartéis e demais locais sujeitos à administração militar, é muito condenável que deixe o preconceito que permeia seu pensamento extravasar em forma de texto legal. A proibição do ato libidinoso homossexual está incluída na proibição mais genérica da prática de qualquer ato libidinoso em local sujeito à administração militar. De fato, o CPM em vigor tem os traços do período em que foi confeccionado. Foi publicado em 21 de outubro de 1969, poucos meses após o derrame que atacou o general Costa e Silva. Uma Junta Militar composta por integrantes das três Forças Armadas governava o País. Repita-se: que se queira manter a disciplina na caserna é louvável. Que se queira alijar, do ambiente militar, as pessoas homoafetivas, é lastimável. Espera-se, pois, que os dois projetos de lei mencionados, que tramitam há anos, sejam aprovados, e esse ranço preconceituoso seja eliminado do texto legal. Afinal, enquanto nossos diplomas legais continuarem oferecendo confortável morada para demonstrações de discriminação, a igualdade perante a lei permanecerá como mero faz-de-conta. E se nem na lei há igualdade, onde encontrá-la então?

Notas

(1) Ferraz Júnior, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão, Dominação. 2ª ed., São Paulo: Atlas, 1994, p. 280.

(2) Idem, pp. 280-281.


Por Mariana Barros Barreiras, Bacharel e mestranda em Direito Penal pela Universidade de São Paulo e agente de Promotoria do Ministério Público do Estado de São Paulo.


Boletim IBCCRIM nº 187 - Junho / 2008

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