sexta-feira, 25 de julho de 2008

Artigo: A obrigação de soprar o bafômetro e o direito de não produzir prova contra si mesmo

Após a publicação da Lei 11.705, tem sido afirmado que ela seria inconstitucional ao permitir que a autoridade de trânsito obrigue (sob pena de sanções administrativas) o motorista envolvido em acidente de trânsito, ou suspeito de dirigir sob a influência de álcool, a se submeter a testes de alcoolemia.

É juridicamente equivocada a afirmação de que o motorista envolvido em acidente de trânsito ou suspeito de dirigir embriagado tem o direito constitucional de se recusar a se submeter ao teste do bafômetro. Com a obrigação de soprar o bafômetro, não se exige que o cidadão produza prova contra si mesmo. O que se tem é a obrigatoriedade de os condutores - porque praticam uma atividade que por sua natureza coloca em risco a vida de muitas outras pessoas - simplesmente permitirem que se lhes aplique uma medida de registro corporal que tem nítido caráter preventivo, além de eficácia comprovada em todo o mundo.

Por outro lado, é contraditório dizer que o condutor pode se recusar a soprar o bafômetro, mas não pode se recusar a se submeter a um exame clínico: ora, o exame clínico tanto quanto o teste do bafômetro é um registro corporal, e tal como no bafômetro pode ou não demonstrar que o examinado infringiu uma norma legal.

Na Espanha, país que reduziu drasticamente os acidentes e crimes de trânsito, o Tribunal Constitucional decidiu em 1985 que o dever de se submeter ao controle de alcoolemia não pode ser considerado contrário ao direito de não se confessar culpado. Em 1997, o Tribunal voltou a se pronunciar sobre o tema, desta vez deixando muito claro que tampouco pode ser vista na obrigação de soprar o bafômetro uma violação do direito de não fazer prova contra si mesmo. Também o Tribunal Europeu de Direitos Humanos já se manifestou no sentido de que a exigência de submeter-se ao teste do bafômetro não viola nenhum direito fundamental do cidadão.

O principal objetivo do uso massivo do bafômetro não é incriminar pessoas (a maioria dos testes tende a dar negativo), mas sim prevenir acidentes. Dado esse caráter preventivo do teste do bafômetro, submeter-se a ele é algo que naturalmente se pode e deve exigir de todo aquele que obtém a autorização do Estado para praticar a atividade - por definição perigosa - de conduzir.

Se se instituísse o dever de todo piloto de avião se submeter ao teste do bafômetro antes do vôo, com a previsão de que a simples recusa implicaria imediata cassação do brevê, ninguém na sociedade brasileira estaria reclamando de vulnerações ao direito de não produzir provas contra si mesmo. Mas será que é tão difícil perceber que o risco envolvido no ato de conduzir é tão alto quanto o envolvido no ato de pilotar?

Uma norma essencial da nova legislação é aquela que define como crime conduzir veículo automotor na via pública com concentração de álcool por litro de sangue superior a 6 decigramas. Mesmo que o condutor não esteja dirigindo "como um bêbado", a presença desse teor alcoólico em seu sangue indica (e nenhum médico há de negar) um grave risco de acidentes, com mortes, mutilações e todas as desgraças que podem ocorrer ao condutor e a todas as pessoas que circulam nas vias públicas. É o uso massivo do bafômetro que tornará eficaz a repressão a tal crime, já que a lei indica um teor alcoólico preciso (6 decigramas), que um exame clínico (feito geralmente em condições precárias e somente algumas horas após o condutor ser parado pelo policial) não pode indicar.

Por isso se deve combater com muito vigor a afirmação - aparentemente inofensiva - de que devemos enfrentar o problema do álcool no trânsito, mas não com a obrigação de que os motoristas suspeitos soprem o bafômetro. Não há vulneração de nenhum dispositivo constitucional e as estatísticas mundiais demonstram que o uso massivo do bafômetro é medida essencial em qualquer política eficaz de combate ao álcool no trânsito.

No Brasil, a lei já está dando certo, pois nos últimos finais de semana caiu em 20% o número de internações nos hospitais em todo o Brasil decorrentes de acidentes de trânsito. As ações judiciais contra a lei vêm por aí, e espera-se que o Poder Judiciário compreenda bem essa questão jurídico-constitucional e não mate no nascedouro a nova e promissora política de tolerância zero estabelecida democraticamente pelos legisladores brasileiros.


Por Marciano Seabra de Godoi é advogado e professor de Direito da PUC Minas


O Globo.

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