sexta-feira, 4 de julho de 2008

Artigo: A justiça de transição na América Latina

A cidade de Viña del Mar, Chile, foi palco da VI Reunião do Grupo Latino-americano de Estudos sobre Direito Penal Internacional realizada entre os dias 1º e 3 de abril. O evento, que integra o Programa Estado de Direito para a América do Sul promovido pela Fundação Konrad Adenauer, foi marcado, neste ano, pelo exame comparativo da chamada Justiça de Transição. Para tanto, contou com a participação de estudiosos de onze países da América Latina,(1) além da valiosa contribuição dos representantes da Alemanha,(2) Itália,(3) Espanha(4) e do Tribunal Penal Internacional,(5) todos sob a coordenação científica dos professores Kai Ambos(6) e Ezequiel Malarino.(7)

A Justiça de Transição é expressão de rara felicidade. Com efeito, ocupa-se ela das formas ortodoxas e heterodoxas de promoção da justiça em sociedades marcadas por graves conflitos sociais, políticos ou étnicos. Almeja superá-los mediante um processo de transição rumo à consolidação dos valores da democracia e do Estado de Direito.(8) Supõe, portanto, um projeto de reconciliação que envolva os atores e os grupos conflituosos de modo a compatibilizar os ideais de justiça e de paz. Nessa linha, muitas das vias adotadas não seguirão, necessariamente, o caminho clássico da persecução penal. Daí o recurso às comissões de verdade, ou mesmo à reparação patrimonial das vítimas e de seus familiares. A grande dificuldade, no entanto, é a de fixar os padrões e os limites jurídicos e éticos para a renúncia às vias persecutórias, até mesmo porque para a consciência comum são elas a justa retribuição aos males causados.

A questão é relevantíssima quando trazida para o continente latino-americano. Afinal, os países da região, em sua maioria, enfrentaram regimes autoritários e ditatoriais em um passado não muito distante. Se, por um lado, as soluções dadas são variáveis, por outro, a sensação de insatisfação, em alguns casos, remanesce, o que é indicativo de má condução do processo de transição e de reconciliação.

Nesse campo, a Argentina constitui exemplo bastante ilustrativo. Com efeito, com a superação do regime ditatorial, iniciou-se, desde logo, uma reação penal que, todavia, foi limitada aos quadros mais comprometidos com o plano repressivo-militar. Para tanto, o Congresso Nacional revogou a lei de auto-anistia promulgada ainda sob a égide do governo de exceção,(9) afastando, assim, os entraves jurídicos às persecuções penais. Esta primeira fase, no entanto, foi sucedida por um período que tomou um sentido diametralmente oposto. Foi o momento da edição das Leis de Ponto Final (1986),(10) da Obediência Devida(11) e dos indultos presidenciais (1988/1991). Pressões populares e internacionais levaram a uma terceira fase que ainda se encontra em curso. De fato, em 1995, foram instalados os juízos de verdade. Embora suas funções fossem eminentemente probatórias (e não punitivas), prestaram importante papel para a sustentabilidade das novas persecuções. Estas, aliás, somente foram possíveis com a consagração, pela Corte Suprema, da prevalência das normas internacionais de direitos humanos, o que levou à invalidação das chamadas “leis de impunidade” editadas na década anterior. As dimensões dos novos processos, é importante ressaltar, não estão imunes a críticas, especialmente quando confrontados com os ditames internacionais do devido processo. Com efeito, vários dos acusados, em sua grande maioria com idades muito avançadas, estão submetidos, há longos anos, a prisões processuais sem que qualquer ilegalidade tenha sido reconhecida.

Também no Chile, a Lei de Anistia promulgada em 1978 foi alvo de questionamentos judiciais. A primeira decisão proferida pela Corte de Apelações de Santiago, em 1994, declarou-a inaplicável consagrando, para tanto, a superioridade das Convenções de Genebra sobre direito humanitário. A Corte Suprema em duas decisões distintas reforçou este posicionamento. Todavia, em agosto de 2005, quando do julgamento do caso Rioseco y Cotal, reconheceu, novamente, a sua aplicabilidade. Paralelamente, diversas medidas administrativas e civis foram adotadas dirigidas à reconstrução histórica dos acontecimentos e à reparação dos danos. Foi o que levou à instalação das Comissões Nacionais de Verdade e Reconciliação (1990),(12) de Reparação e de Reconciliação (1992)(13) e mais recentemente sobre Prisão Política e Tortura (2003).(14)

Já o marco conflitivo no Peru, iniciado em 1980, perdurou até a primeira metade dos anos noventa e envolveu, de um lado, os grupos subversivos Sendero Luminoso e o Movimento Túpac Amaru e, do outro, as forças governamentais e os grupos paramilitares. Após o golpe de abril de 1992, Alberto Fujimori dá início a um governo autoritário pautado por detenções arbitrárias, desaparecimentos forçados, torturas e execuções sumárias. A apuração dos excessos praticados pelos dois lados constituiu o cerne da Comissão de Verdade e Reconciliação instalada em 2001,(15) logo após o término abrupto daquele governo. O relatório final, com várias recomendações, foi crucial para a criação do Programa Integral de Reparação às vítimas do conflito. Por sua vez, a Lei de Anistia(16) foi declarada inválida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no rumoroso caso Barrios Altos o que foi reputado fator decisivo para a deflagração da persecução penal contra o ex-presidente Fujimori por delitos contra a humanidade e corrupção.

Em Bolívia, a busca pela responsabilização penal por conta da prática dos graves crimes cometidos durante os regimes autoritários resultou na condenação, em 1983, do ex-presidente Garcia Meza,(17) à pena de trinta anos de prisão, por vários crimes dentre os quais aquele que ficou conhecido como o Massacre de la calle Harring­ton.(18) Capturado em São Paulo, foi extraditado pelo Brasil em 1995.(19) Quanto às medidas alternativas, em 1982, a Comissão Nacional de Investigação de Desaparecidos já havia identificado pelo menos 155 casos ocorridos entre 1967 e 1982 quando foi dissolvida antes mesmo de elaborar o relatório final. No mais, somente em 2004 é que foi editada uma lei específica voltada à reparação das vítimas de violência política cometidas pelos governos inconstitucionais bolivianos.(20)

Em El Salvador, uma guerra civil de doze anos (1980-1992) levou a um cenário de desastre humanitário estimado em 70.000 vítimas. Foi o acordo de paz firmado em Chapultepec, México, em 1992, que permitiu, além da reconciliação nacional, uma mudança jurídica e institucional naquele país. Foi também em decorrência daquele acordo que foi instalada uma comissão de verdade que ficou incumbida de apurar os mais graves crimes. O informe final foi apresentado em março de 1993 após a investigação de mais de 22.000 denúncias. Igualmente relevante para a consolidação do processo de paz foram as medidas adotadas para o desarmamento e desmobilização das partes conflituosas, especialmente a guerrilha e os grupos paramilitares, além da depuração das próprias Forças Armadas com o afastamento daqueles mais comprometidos com os conflitos.

Mas, é sem dúvida em Colômbia que a Justiça de Transição assume contornos mais emblemáticos. Lá a superação não é do passado, mas sim, de um presente conflituoso e que é fonte de contínuas e de constantes violações aos valores mais caros à humanidade. As mais recentes tentativas de reconciliação nacional fundam-se na Lei de Justiça e Paz, editada em junho de 2005.(21) Seus objetivos são ambiciosos. Com efeito, pretende estabelecer um procedimento que permita a reintegração social dos grupos armados responsáveis pela prática de graves crimes, sempre que seus integrantes contribuírem para a paz nacional. Daí a possibilidade de imposição de penas alternativas (variáveis de cinco a oito anos) ou mesmo a concessão de outros benefícios característicos de uma espécie de “Direito Penal Premial”. Para tanto, são fixadas condições que vão desde a desmobilização individual, com a delação dos demais integrantes, até o desmantelamento coletivo do grupo com a entrega de armas e dos seqüestrados. Não há informações precisas quanto à efetividade das medidas implementadas, embora sobre elas paire uma intensa esperança social.

No Brasil, como se sabe, a persecução penal dos crimes cometidos durante o regime militar pelas autoridades públicas restou inviabilizada. Em parte por força da Lei de Anistia promulgada em 1979 e sobre a qual poucas foram as discussões quanto à legalidade e à pertinência da conexão dada por seu artigo 1º.(22) Por outro lado, o contexto político nos anos que se seguiram ao término daquele regime não contribuiu para qualquer enfrentamento. Afinal, os militares sempre exerceram contínua influência sendo fundado o temor de um recrudescimento no processo de transição. Não obstante, a perspectiva de punição dos responsáveis jamais sensibilizou a opinião pública nacional. Afinal, os dez primeiros anos de restabelecimento democrático foram pautados pela necessidade de superação de uma crise econômica sem precedentes, posteriormente agravada pela crise política do impeachment de Fernando Collor. De mais a mais, o apego a uma concepção tradicional de soberania por parte do STF sempre trouxe especiais dificuldades quanto ao reconhecimento da validade dos costumes e das normas internacionais de direitos humanos.

Somente a partir de 1995 é que foram desencadeadas as primeiras medidas alternativas à persecução penal. A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos instituída pela Lei 9.140, em mais de onze anos de atividade, reconheceu 221 casos de desaparecimentos forçados, além dos 136 que já tinham sido assim declarados pela própria lei que a instituiu.(23) Atualmente, seus trabalhos estão concentrados na construção de um banco de DNA, para a futura identificação de vítimas, assim como para a elaboração de um programa dirigido à localização de covas clandestinas. No campo reparatório, a MP 2.151/2001, posteriormente convertida na Lei 10.559/2002, regulamentou o art. 8º das Disposições Transitórias da Constituição da República, fixando, assim, os parâmetros para a reparação financeira às vítimas das perseguições políticas cometidas de setembro de 1946 até a promulgação da Constituição de 1988. Para além desta função, a Comissão de Anistia pretende implementar, ainda, medidas de cunho educacional que reforcem a importância dos valores democráticos bem como dos limites das atuações estatais.

Este sucinto quadro comparativo, se por um lado revela não ser a persecução penal o único mecanismo possível para a sedimentação da paz em situações de transição democrática, não autoriza, por outro, o afastamento puro e simples das vias punitivas com a edição unilateral de leis consagradoras da impunidade. Afinal, não são elas condizentes com o atual estágio de amadurecimento atingido pela comunidade internacional. Somente em situações excepcionais, quando imprescindíveis para a consagração da paz, é que as anistias seriam pertinentes. Mas, mesmo aqui as vítimas não poderiam ser esquecidas. Daí a importância das reparações moral e financeira. E não só. Com efeito, mais importante do que tudo está o dever de formar um legado que possa ser absorvido pelas futuras gerações. Nessa perspectiva, o segredo e o desconhecimento quanto ao passado são profundamente nocivos para a formação de sociedades comprometidas com o ideal de liberdade. Daí a relevância do direito à verdade e à memória. Enfim, o que não é assimilado pela História reaparece como sintoma.(24)

Notas

(1) Argentina (Daniel Pastor), Bolívia (Elizabeth Santalla Vargas), Brasil (IBCCRIM - Maria Thereza Rocha de Assis Moura, Marcos Zilli e Fabíola Ghidalevich), Chile (José Luis Guzmán Dalbora), Colômbia (Alejandro Aponte Cardona), El Salvador (Jaime Martínez Ventura), Equador (Salvador Herencia), México, Perú (Dino Carlos Caro Coria), Uruguai (Pablo Galain Palermo) e Venezuela (Juan Luis Modolell).

(2) Nils Meyer-Abich.

(3) Emanuela Fronza.

(4) Alicia Gil Gil.

(5) Hectór Olásolo.

(6) Universidade de Göttingen, Alemanha.

(7) Universidade de Buenos Aires, Argentina.

(8) AMBOS, Kai. El Marco Jurídico de la Justicia de Transición. Colômbia: Temis, 2008, p.1.

(9) A Lei 22.924 denominada de Lei de Pacificação Nacional, publicada em 27 de setembro de 1983 foi revogada em 22 de dezembro do mesmo ano pelo Congresso Nacional com a edição da Lei 23.040.

(10) Lei 23.492, publicada em 29 de dezembro de 1986.

(11) Lei 23.521, publicada em 9 de junho de 1987.

(12) Instituída com o objetivo de fixar um quadro mais completo sobre os crimes praticados e recomendar as medidas de reparação.

(13) Instalada pela Lei 19.123 de 08 de fevereiro de 1992 teve por objetivo fixar a reparação das vítimas e familiares.

(14) Decreto 1.040 de 11 de novembro de 2003.

(15) Criada em 4 de junho tinha por objetivo esclarecer os fatos e identificar a responsabilidade pelos atos terroristas e pela violação dos direitos humanos praticados desde maio de 1980 até novembro de 2000.

(16) Lei 26.479 de 14 de junho de 1995.

(17) Presidente que assumiu o poder em 1980 através de um golpe de estado. Fechou o Congresso Nacional, determinou a censura total da imprensa.

(18) Morte de oito dirigentes políticos do Movimento de Esquerda Revolucionário que se reunia no dia 15 de janeiro de 1981 na Rua Harrington.

(19) Ext. 615/BO.

(20) Lei 2.640. Dentre as condutas taxativamente previstas como passíveis de reparação encontram-se: detenção e prisão arbitrária, tortura, exílio, lesões, homicídios cometidos na Bolívia ou no exterior por motivação política, desaparecimento forçado e persecuções penais por razões político-sindicais (art. 4º).

(21) Lei 975.

(22) É o que dispõe o parágrafo primeiro do art. 1º da Lei 6.683: consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.

(23) Ver, para tanto: Direito à Memória e à Verdade: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007.

(24) Como anota Marco Antônio Rodrigues Barbosa, atual presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.



Por:

Marcos Zilli, Juiz de Direito e professor doutor de Processo Penal na Faculdade de Direito do Largo São Francisco - USP

Maria Thereza Rocha de Assis Moura, Ministra do Superior Tribunal de Justiça e professora doutora de Processo Penal na Faculdade de Direito do Largo São Francisco - USP


Boletim IBCCRIM nº 187 - Junho / 2008

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