quarta-feira, 23 de julho de 2008

Artigo: Entre bafômetros e algemas

Para um mês de férias, foi um movimento e tanto. Neste julho, graças ao choque cultural provocado pela lei seca, primeiro, e pelo barulho armado em torno da Operação Satiagraha, depois, fazia tempo que não se topava por aqui com uma discussão a quente sobre duas coisas sem as quais a sociedade democrática vira uma terceira, desfigurada. Direitos individuais, de um lado. Interesse público, de outro. De um lado e de outro não porque se oponham necessariamente, mas porque são duas metades de uma engrenagem feitas para funcionar em permanente tensão.

O bom do debate público é que expõe, além das verdades ostensivas dos debatedores, as verdades sobre os debatedores - os interesses por trás dos argumentos. Esses interesses, reduzidos a pele e ossos, sempre são por poder, prestígio ou riqueza, sob quaisquer de suas inumeráveis manifestações. Argumentos desinteressados também existem, sem dúvida. É fácil identificá-los: são os que admitem que outras idéias devem ser levadas em conta, não por fair play, mas porque elas podem ser procedentes. Nessas preciosas situações, o debate ilumina, em vez de apenas soltar fumaça.

Não teve muito disso nos tiroteios em que se envolveram juízes, policiais, procuradores e advogados, sobre as ordens de prisão e os habeas-corpus dados a Daniel Dantas, ou sobre a "espetacularização" - já não bastasse a palavra Satiagraha! - das ações do delegado Protógenes. Teve menos ainda nas reações ouriçadas à tolerância zero a beber e guiar. Nesse caso em especial, impera o que o jornalista americano Mac Margolis, correspondente da revista Newsweek no Brasil, teve o estalo de chamar "laissez-faire da barbárie". (O seu artigo, O bafo dos inconformados, domingo último neste jornal, é de ler e guardar.)

Naturalmente, nem todos os críticos da lei da temperança são tolerantes com a barbárie, muito menos bárbaros eles próprios. Mesmo assim, ao acusar o Estado de abater a sua mão pesada sobre a liberdade do cidadão que não teria por que pagar pela embriaguez alheia, eles tropeçam na realidade elementar segundo a qual a intervenção punitiva do poder público no que seriam relações exclusivamente privadas - como entre fumantes e não-fumantes, para citar um exemplo aparentado - é tanto mais justificada quanto mais essas relações se dão sob o desdém dos espaçosos pelos incomodados, na linha da máxima cafajeste "os outros que se danem".

Sociedades civilizadas são aquelas em que a família e a escola incutem nas novas gerações que o bem-estar de cada um - em situações e ambientes públicos - não só não se pode dar à custa do bem-estar alheio, mas, antes, depende em ampla escala do bem-estar alheio. À medida que se forma e se consolida essa modalidade de círculo virtuoso, o poder de repressão do Estado em favor do bem comum passa a ser latente: as leis que tipificam e castigam as condutas socialmente inaceitáveis não desaparecem dos códigos, nem se atrofia a capacidade do Estado de fazer com que sejam cumpridas, mas o aparato repressor fica, por assim dizer, recolhido aos quartéis.

"Algema também educa", escreve ironicamente Margolis, ao contar que só depois de ver o seu carro imobilizado com uma enorme trava amarela da polícia de Boston se convenceu "do bom senso de estacionar corretamente". Por nos faltar o bom senso das sociedades civilizadas - há quem argumente que nos estamos afastando, em vez de nos aproximarmos, desse porto seguro para convivência entre estranhos -, enquanto o cotidiano se torna cada vez mais difícil nas nossas sufocantes metrópoles, o que se precisa, sim, é de mais leis civilizadoras e mais estrita aplicação das leis. Literalmente, até aprendermos.

Que país é este?, perguntaria o inesquecível Francelino da ditadura, em que a lei do respeito à faixa de pedestres "é tida como um costume exótico", lembra o jornalista americano (menos em Brasília, herança do governo Cristovam Buarque). Outra face da incivilidade vem de sermos desiguais perante a lei - quem sabe, a mãe de todas as desigualdades. A incivilidade, no caso, se expressa numa perversão: aqueles cansados de saber que não têm conforto a esperar da polícia e do sistema judicial costumam reagir com júbilo feroz quando vêem na TV um rico ser tratado como eles (ou quase). O símbolo são as algemas.

A "democratização" da violação dos direitos da pessoa consola os que, na prática, deles mais precisam - e nunca viram a elite branca, salvo os ativistas de sempre, protestar contra as arbitrariedades de que são alvo permanente. E quando um doutor recupera a liberdade em horas, no Supremo Tribunal, para a grande maioria é a enésima prova de que o caminho das pedras no Brasil passa por um bom advogado - ou por amigos certos nos lugares certos. Vai ver é isso mesmo, mas a hipótese de que a prisão talvez não se justificasse nem sequer é cogitada.

De toda maneira, algo ficará do debate das últimas semanas, se não pelo que tenha feito um certo número de brasileiros pensar sobre a questão do complicado enlace entre direitos individuais e direitos da coletividade, pelos possíveis desdobramentos dos fatos que o provocaram. Se, ao contrário do que parece, daqui a um punhado de meses ficar demonstrado que a lei seca é mais uma daquelas que não vingaram - e os bafômetros virarem piada -, os cínicos terão a que brindar. Afinal, eles bem que sustentavam, com essas ou outras palavras, que as instituições pouco podem no Brasil para provocar mudanças de atitudes sociais, por incapacidade de punir os que se recusam a mudar.

E será um motivo de desalento para todos aqueles que participaram da discussão da forma mais singela possível, simplesmente dizendo aos institutos de pesquisa que aprovavam a maior inovação no Código de Trânsito Brasileiro desde o seu aparecimento, em 1997 - segundo o Datafolha, foi o que responderam 86% dos entrevistados no Rio e em São Paulo.


Por Luiz Weis é jornalista


Estadão.

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