sexta-feira, 18 de julho de 2008

Artigo: Aspectos teóricos e práticos da "Lei Seca"

No último dia 19 de junho de 2008 foi promulgada a Lei n.º 11.705, já denominada por alguns de “Lei Seca” ou “Tolerância Zero”.

O objetivo do advento desta Lei foi, como amplamente divulgado, a redução do índice de mortalidade decorrente de acidentes de trânsito causados por motoristas embriagados.

Não obstante a “muito boa intenção” por todos desejada, a nova legislação trouxe inovações que podem impactar e prejudicar diretamente a produção dos efeitos a que a lei se destina. As alegações de inconstitucionalidades certamente virão.

O Código de Trânsito Brasileiro (Lei n.º 9.503/97) sofreu alteração nos seus artigos 10, 165, 276, 277, 291, 296, 302 e 306, ou seja, tanto na parte administrativa quanto na penal.

A principal modificação de cunho administrativo veio estampada no artigo 165. A redação original exigia a concentração mínima de seis decigramas de álcool por litro de sangue para a imposição de penalidade administrativa. Agora, prevalece a tolerância zero: permite-se a aplicação das penalidades de multa, suspensão do direito de dirigir e retenção do veículo independentemente da quantidade de álcool encontrada no sangue do motorista. Assim dispõe o novo artigo 276, do Código de Trânsito Brasileiro: “Qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165 deste Código.”

Em relação à parte penal, a grande mudança ocorreu no delito de embriaguez ao volante (artigo 306).

A antiga redação do artigo previa a exigência de uma situação de risco de perigo concreto a outra pessoa, com a expressão: “exposição a dano potencial a incolumidade de outrem”.

À época da vigência desta redação, já se discutia se bastava a direção anormal (v.g. zigue zague), sob a influência de álcool ou outra substância ou se havia a efetiva necessidade de demonstração da exposição ao dano potencial. A jurisprudência já havia assentado o entendimento correto de que para a caracterização do crime era necessária a probabilidade efetiva de causar dano.

A nova disposição trazida pela Lei para o artigo 306, suprimiu a “exposição a dano potencial a incolumidade de outrem”, passando a vigorar com o seguinte conteúdo: “Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Penas – detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.”

Aparentemente, pretendeu o legislador incriminar a conduta que sequer apresente qualquer possibilidade de causar dano a outrem, abrangendo, assim, o perigo abstrato, inadmissível em matéria penal.

É pacífico o entendimento na doutrina penal pátria que a punição fundamentada no perigo abstrato é inconstitucional, uma vez que fere o princípio da ofensividade.

Mas há ainda um problema maior, possivelmente causador de piores situações: introduziu-se, no tipo penal, a discriminação do percentual de álcool no sangue (seis decigramas, a ser aferido por exame de sangue ou três décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões, a ser aferido por bafômetro). Assim, comete crime aquele que conduzir veículo automotor e estiver com este índice de álcool no sangue.

O tipo penal faz esta exigência, mas como provar? Os meios que o Código de Trânsito Brasileiro oferece para a medição deste percentual são o exame de sangue, o bafômetro e o exame clínico. E se o condutor embriagado, que não pode ser obrigado a fazer prova contra si, recusar-se aos dois primeiros métodos? Em tese, a recusa em se submeter ao bafômetro e ao exame de sangue não pode acarretar ao motorista nenhuma sanção. Quanto à recusa ao exame clínico, teoricamente, o condutor estará sujeito apenas às penalidades e medidas administrativas previstas no artigo 165, conforme dispõe o parágrafo 3º, do artigo 277, do CTB.

Parece bastante temerário deixar a constatação da influência do estado de embriaguez sob a responsabilidade do agente de trânsito que suspeitar desta condição e, posteriormente, tiver que prestar eventual depoimento.

A Polícia Rodoviária Federal (PRF) vai prender o motorista que estiver aparentemente embriagado, mesmo que ele se recuse a se submeter ao teste do bafômetro. Essa pelo menos é a instrução que a PRF passou para os policiais rodoviários.

A orientação é embasada a partir da leitura conjunta dos arts. 165, 276 e 277.

Em síntese, o entendimento que a polícia extraiu desses artigos é o seguinte: 1) Qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor à multa de R$ 955,00, (novecentos e cinqüenta e cinco reais) suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses e retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado, além do recolhimento do documento de habilitação. 2) A infração de dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor. 3) Serão aplicadas as mesmas penalidades e medidas administrativas para o condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos testes de alcoolemia.

Esse entendimento, entretanto, não pode prevalecer, principalmente quando tratarmos da criminalização da conduta fundamentada na presunção ou perigo abstrato.

Dessa forma, a partir de uma análise pragmática sobre a questão, imaginemos que um indivíduo é parado por uma blitz, independente de haver ingerido álcool ou não, e se recusa a fazer o bafômetro. Quais as conseqüências que os condutores estão sofrendo?

Em primeiro lugar estará sujeito às penalidades administrativas do art. 165 (multa de R$ 955,00, suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses e retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado, bem como o recolhimento do documento de habilitação). Além disso, será conduzido à Delegacia para a instauração de Inquérito Policial porque, em tese, cometeu o crime previsto no art. 306 do Código de Trânsito. Neste caso, considerando tratar-se de infração afiançável, a autoridade policial fixará um valor a título de fiança e o condutor deverá ser liberado.

Porém, apesar da ilegalidade acima mencionada, as notícias dão conta que a polícia tem instaurado inquérito por esse fato, razão pela qual continuamos a análise prática.

Uma vez instaurado o procedimento na polícia, a autoridade policial deverá encaminhar o condutor ao exame clínico para provar a ingestão de álcool. Constatada essa situação, parece-nos razoável que o inquérito siga seu curso natural.

Por outro lado, entendemos ser inconstitucional e, por isso, altamente defensável pelas vias legais, o inquérito instaurado a partir da recusa na realização do teste do bafômetro ou aquele instaurado sem prova de ingestão de álcool.

É certo que a iniciativa de se combater a mortalidade decorrente de acidentes de trânsito envolvendo motoristas embriagados, bem como a de se evitar que a pessoa que ingeriu bebida alcoólica dirija, são louváveis. Contudo, os meios para se alcançar estas finalidades não podem ultrapassar limites da razoabilidade e, até mesmo, de constitucionalidade, sob pena de tornar a legislação que veio para “endurecer”, letra morta.


Por Regina Mª. Bueno de Godoy Camacho e Diego Vilhena Gonçalves, Advogados/SP.


GONÇALVES, Diego Vilhena, CAMACHO, Regina Mª. Bueno de Godoy.Aspectos teóricos e práticos da “Lei Seca”. Disponível na internet www.ibccrim.org.br 18.07.2008.

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