segunda-feira, 28 de julho de 2008

Artigo: Apropriação indébita previdenciária: crime formal ou material?

Como se sabe, são quatro as condutas previstas no artigo 168-A do Código Penal: a) deixar de repassar à Previdência Social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional; b) deixar de recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à Previdência Social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público; c) deixar de recolher contribuições devidas à Previdência Social que tenha integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços; e, d) deixar de pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela Previdência Social.

Salvo algumas poucas exceções, os Tribunais(1) vinham entendendo que se tratava de crime omissivo próprio formal, ou seja, não se exigia a apropriação dos valores que deveriam ser recolhidos, com inversão da posse respectiva, e nem dano efetivo à Previdência Social, consumando-se o crime com a simples omissão no recolhimento da contribuição, sem necessidade de resultado naturalístico.
Grande parte da doutrina se inclina no mesmo sentido, entendendo que não se trataria de crime de apropriação propriamente dito, pois não se exigiria à configuração delitiva a apropriação de valor, mas sim a omissão em deixar de recolher à Previdência a contribuição enfocada(2). Outros entendem que se pode falar em apropriação, ainda que contábil, pois “quem contabiliza um desconto da previdência e depois não repassa, sabendo disso e podendo fazer isso, se apropria do que devia ter recolhido”(3).

De qualquer forma, bastaria a presunção ficta de uma apropriação por parte do responsável tributário. Chegava-se a entender que mesmo que não tivesse sido, por exemplo, descontada dos trabalhadores a contribuição, seria suficiente, para a configuração do crime, que se deixasse de recolher os valores à previdência, no prazo e na forma estabelecida em lei.

Ao assim se classificar tal tipo penal, tinha-se como importante conseqüência a desnecessidade do encerramento do processo administrativo fiscal, pois seria suficiente a simples omissão, não tendo que se falar em lançamento definitivo do crédito tributário. Igualmente, não seria necessária a inversão da posse, dano efetivo à previdência e nem ânimo de apropriação por parte do responsável tributário.

O entendimento atual, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, é justamente nesse sentido, conforme se observa da decisão proferida sobre o assunto no julgamento do Habeas Corpus n. 86.783, cuja publicação ocorreu em 3/3/2008. Foi decidido que se trataria de crime formal, não exigindo “para sua consumação a ocorrência de resultado naturalístico, consistente em dano para a previdência, restando caracterizado com a simples supressão ou redução do desconto da contribuição”.

Ocorre que, recentemente, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento de Agravo Regimental apresentado junto aos autos de Inquérito n.º 2537, em decisão unânime, adotou entendimento diverso sobre o assunto, pois decidiu se tratar de crime omissivo material, sendo indispensável a ocorrência de apropriação dos valores, com inversão da posse respectiva. Consignou-se, ainda, que o bem jurídico protegido é o patrimônio da Previdência Social.

Segundo o relator, “a leitura do artigo 168-A do Código Penal revela que se tem como elemento da prática delituosa deixar de repassar contribuições previdenciárias, indispensável, portanto, a ocorrência de apropriação dos valores, com inversão da posse respectiva”.

Com isso, entendeu-se que pendente recurso administrativo em que discutida a exigibilidade do tributo, seria inviável tanto a propositura da ação penal quanto a manutenção do inquérito, sob pena de preservar-se situação que degrada o contribuinte.

Como se constata, essa decisão unânime do plenário da Corte Suprema outorga interpretação diametralmente oposta da que vinha sendo adotada pela quase unanimidade dos órgãos julgadores e pela doutrina dominante quanto ao tipo em referência.

A importância do julgado é muito grande, pois pode acarretar a impossibilidade de instauração de inquérito policial e de oferecimento de denúncia antes do encerramento definitivo do processo administrativo (igualmente ao que já ocorre nos crimes de sonegação fiscal e de sonegação previdenciária), bem como pode passar a se entender ser imprescindível, por se tratar de crime material, a apropriação efetiva, e não mais ficta, com inversão da posse respectiva, do valor efetivamente descontado, que deveria ser repassado à previdência social. Além da inversão da posse poderia se entender que passaria a ser necessária, ainda, a ocorrência do dolo específico, ou seja, a demonstração do ânimo de apropriação, ainda que, conforme muitos, haja uma grande dificuldade prática para sua caracterização.

Como argumentos a favor do posicionamento acolhido pelo Supremo Tribunal Federal, alguns afirmam que ao se entender que o crime de apropriação indébita previdenciária seria formal, equiparar-se-ia a pena de reclusão à multa fiscal por ausência de recolhimento do tributo, o que não se poderia admitir.

Além disso, existindo, por exemplo, alguma controvérsia com relação ao quantum debeatur, tolher-se-ia o direito do contribuinte realizar qualquer discussão sem que pesasse sobre si a imediata possibilidade de ser instaurado inquérito policial e iniciada ação penal, com todos os ônus que lhes são inerentes, bastando que fosse lavrada a respectiva NFLD. O contribuinte, em síntese, conforme alegam, teria que recolher o tributo na forma, no prazo e no quantum estabelecido pelo órgão arrecadador, sem possibilidade de discussão, antes de ser instaurado inquérito ou iniciada a ação penal.

Como observado no decisum, ainda, o tipo seria claro ao exigir o desconto da contribuição e a ausência do repasse, não bastando simplesmente que se deixe de recolher a contribuição no prazo e na forma estabelecida.

Antes mesmo que as vozes dissonantes surjam, é importante frisar que não parece se tratar de entendimento procrastinatório ou revelador de privilégio ao acusado, pois o lapso prescricional, justamente porque ainda não consumado o delito v.g. o delito do artigo 1.º da Lei 8137/90 e o artigo 337-A do Código Penal não terá seu início enquanto não findo o procedimento administrativo fiscal. A bem da verdade, o entendimento ora trazido pelo Pretório Excelso poderia acarretar em economia processual e denotar adequação ao caráter fragmentário imanente ao Direito Penal, em que pese a evidente discussão quanto ao caráter formal ou material do tipo em referência.

Diante disso, instaurar-se-á grande controvérsia, pois os inquéritos policiais em curso para investigação de crimes de apropriação indébita previdenciária, se pendente ainda decisão definitiva em processo administrativo fiscal, a rigor, teriam que ser trancados, nos termos da decisão do Supremo Tribunal, a exemplo do ocorrido em muitos inquéritos que versavam sobre o artigo 1.º da Lei 8137/90 após o advento do paradigmático Habeas Corpus 81.661/DF, também do Supremo Tribunal Federal.

Igualmente, nas ações penais iniciadas sem que antes tenha havido a constituição definitiva do crédito tributário, observando-se o decisum, dever-se-ia ser reconhecida sua nulidade ab initio. Ainda que tenha a constituição do crédito tributário ocorrido posteriormente, não haveria como se manter a ação penal, pois inconcebível que se tenha oferecido e recebido a denúncia por fato criminoso que só teria vindo a se consumar durante o curso da ação penal precocemente iniciada.

Por fim, a necessidade de comprovação de dano à Previdência Social, de inversão da posse e de ânimo de apropriação por parte do responsável tributário poderia determinar a re-análise de casos anteriormente julgados em que houve a condenação sem a presença desses requisitos.
De qualquer forma, certo é que grande controvérsia será instaurada perante os órgãos julgadores e perante as Delegacias da Polícia Federal, ao menos enquanto não houver a edição de eventual súmula vinculante por parte da Corte Suprema.

Notas:

(1) Vide, por exemplo, as liminares proferidas nos Habeas Corpus n.º 2007.04.00.022930-7/PR e 2006.04.00.031146-9/RS que tramitaram perante o Tribunal Regional Federal da 4.ª Região.

(2) Nesse sentido, v.g., FRANCO, Alberto Silva. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. p. 2.780.

(3) GOMES, Luiz Flávio. Crimes previdenciários: apropriação indébita, sonegação, falsidade documental, estelionato, a questão do prévio exaurimento da via administrativa. p. 32.

Por Robson Galvão é especialista em Direito Penal e Criminologia pela Universidade Federal do Paraná, especialista em Direito Penal Econômico pela Universidad
Castilla-La Mancha/ES, mestrando em Direito Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Advogado criminal.
robsongalvao@digiall.com.br


O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 27/07/2008.

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