sexta-feira, 13 de junho de 2008

Um novo cotidiano para as favelas cariocas

Apesar de a complexidade da violência urbana trazer consigo a sensação de insolubilidade, existem importantes iniciativas sendo executadas, que revertem esta noção pessimista. Num projeto inovador, que conta com a atuação conjunta da polícia e das comunidades, o Grupamento de Policiamento em Áreas Específicas (Gpae) tem enfrentado, de maneira bem sucedida, o problema da distância entre polícia e comunidade e o do medo que os cidadãos têm da polícia.

Criado em julho de 2000, pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, o Gpae foi implantado, em setembro de 2000, na comunidade do complexo Pavão-Pavãozinho e Cantagalo, que tem uma população estimada entre 17 mil e 20 mil habitantes na área mais nobre da cidade do Rio de Janeiro, entre os bairros de Copacabana, Ipanema e Lagoa Rodrigo de Freitas. Para a implantação desse projeto, foram realizadas reuniões com representantes das comunidades, simultaneamente a um programa de estágio para os policiais, ambas as atividades com intuito de sensibilizar comunidade e policiais para os problemas relativos a violência ali enfrentados. Um dos desafios do Gpae tem sido o processo de revitalização de recursos humanos. Desde a criação do Grupamento, foram afastados 50 policiais, por existirem fortes evidências de comprometimento da sua idoneidade moral, profissional e de suas ações policiais perpetradas contra cidadãos comuns, caracterizadas por maus tratos, violência arbitrária ou abuso do poder. A resposta imediata a essa demanda da comunidade constituiu um importante fator para o estabelecimento de relações de respeito e confiança entre polícia e comunidade.

O Gpae presta serviços de policiamento ostensivo, tendo como foco principal a preservação da ordem pública. No entanto, a ação do Grupamento está alicerçada no esforço contínuo de aplicação de novas estratégias de prevenção e repressão qualificada do delito, a partir da filosofia da Polícia Comunitária. A ação do Grupamento é essencialmente preventiva e, apenas eventualmente, repressiva, contando com a integração dos serviços e com a mobilização de instituições, líderes comunitários e outros parceiros que possam contribuir para o desenvolvimento social.

Desde sua implantação, o Gpae alcançou um resultado que antes parecia inatingível, reduziu a zero o número de homicídios e ocorrências de "bala perdida". Só no período de janeiro a setembro de 2000 haviam sido registrados 10 homicídios na localidade. No primeiro ano de atuação, o Grupamento atendeu mais de 260 ocorrências, das quais 25% foram ocorrências policiais criminais, 49% de natureza não criminal, como condução de enfermos ao hospital e auxílio à parturiente.

Dentre os crimes notificados 68,3% estão relacionados ao tráfico de drogas. Segundo o relatório de estatística operacional do Gpae, nos conglomerados urbanos, comunidades populares ou favelas, observa-se uma forte incidência de ocorrências policiais associadas à dinâmica do tráfico de drogas (posse e uso de substâncias entorpecentes). Ainda neste relatório, analisa-se esta incidência relacionada a precariedade das condições ambientais, a insuficiência de serviços e equipamentos urbanos associada à ausência de instâncias representativas do poder público local propiciam o surgimento de focos de desordem urbana nesses espaços geográficos o que favorece a reprodução de valores sócio-culturais distintos daqueles reproduzidos em outras áreas da cidade.

O encaminhamento de demandas e expectativas da comunidade e a interlocução entre a comunidade e outros órgãos públicos, através do Gpae, trouxe uma série de benefícios para a comunidade. Segundo Carballo, houve efetivamente a redução do medo da polícia. Ele lista alguns dos motivos para isso:

a) presença regular e interativa da polícia ostensiva
b) redução da presença ostensiva de armas de fogo no interior das comunidades
c) redução do número de crianças envolvidas em práticas criminosas
d) redução do número de casos envolvendo policiais em ações de maus tratos, violência arbitrária ou abuso do poder
e) inclusão de mais de 100 famílias no Programa de Segurança Alimentar do Governo do Estado (Programa Cheque-cidadão)
f) cadastramento e matrícula de 180 jovens, na faixa etária de 16 a 24 anos, em Programas de Aumento de Escolaridade e Capacitação Profissional (Programa Todos pela Paz)
g) implantação e construção do Espaço Criança Esperança, de iniciativa da Unicef, em parceria com o Gpae, Secretaria de Estado de Ação Social e Viva Rio.

Dado o sucesso do projeto existe atualmente a intenção da Secretaria de Estado de Segurança Pública de ampliar a experiência do Gpae para o Complexo da Maré, conglomerado urbano da cidade do Rio de Janeiro composto por quinze comunidades com uma população estimada em 80 mil habitantes.



Entidades e lideranças comunitárias

Dentro do projeto do Gpae insere-se o Conselho de Entidades e Lideranças Comunitárias, composto por organizações governamentais, como polícia, escola, Secretarias de Governo e outras e, por entidades não governamentais, como Igrejas, Associações de Moradores, Escola de Samba, e ONGs, cumpre o papel de articular e integrar esses diferentes atores em torno de um objetivo comum. Atualmente, destaca-se o apoio institucional da ONG Viva Rio e do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Cândido Mendes.

O mentor desse projeto é o (já falecido) ex-coronel da PM, Carlos Magno Nazareth Cerqueira, que comandou a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, entre 1991 e 1994, criou o Grupamento de Aplicação Prático Escolar (Gape), com fundamentos e atribuições similares às do Gpae. Segundo Carballo, na época essa iniciativa não teve êxito devido ao insuficiente apoio político-governamental. A concepção original foi retomada e redimensionada, em 1999, pelo ex-sub-Secretário de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares.

O major Antônio Carlos Carballo avalia a experiência do Gpae como gratificante e frustrante ao mesmo tempo. Gratificante pelos resultados operacionais alcançados e pela dinâmica empreendida na nova relação entre polícia e comunidade. Frustrante pelo fato de os esforços policiais serem insuficientes para responder às demandas e expectativas emanadas da comunidade. "Infelizmente, nossos governantes ainda não conseguiram superar as vaidades pessoais e unir esforços, de maneira racional e suprapartidária, para enfrentar com responsabilidade esse doloroso problema social exteriorizado na forma da violência e da criminalidade. A polícia continua sendo o centro das atenções, atuando num cenário impróprio, onde não foram esgotados todos esforços de prevenção primária do delito (saúde, educação, saneamento, esporte, cultura, lazer, trabalho, geração de renda, etc). Continuamos 'enxugando o gelo'. A etiologia do fenômeno criminal continua intocada", argumenta o major.

Segundo Luís Eduardo Soares, o Gpae é um grande sucesso, um modelo que só não é mais bem sucedido por conta do isolamento político da Secretaria de Segurança Pública. "Há um isolamento derivado do desinteresse por parte dos gestores da segurança pública do Rio, um desinteresse e uma desconfiança de que de que essa iniciativa dê certo. Não há investimentos sociais para complementar a atuação policial. Mas este modelo é um sucesso e demonstra de forma cabal que é possível mudar a polícia e é possível mudar a relação da polícia com as populações de periferias, simultaneamente respeitando os direitos humanos", afirma Soares.

Para Carballo, a polícia está longe de cumprir sua função na sociedade. "Dizem que a instituição policial é o reflexo da organização social de um país. Se isso for verdadeiro, enquanto as instituições políticas, sociais e econômicas não cumprirem, democraticamente, suas funções, as instituições policiais brasileiras continuarão correspondendo às demandas e expectativas de uma sociedade marcada pela desigualdade", conclui.


Com Ciência.

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