terça-feira, 3 de junho de 2008

Tutto Il Mondo é Paese (V Jornadas de Direito e Psicanálise)

O Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná promove, nos dias 4 de junho de 2008 (a partir das 19h), 5, 6, 7 (pela manhã), no auditório da FESP (Rua General Carneiro, 216 Centro), as V Jornadas de Direito e Psicanálise, neste ano para discutir as interseções e interlocuções entre os dois campos a partir da obra “O Caçador de Pipas”, de Khaled Hosseini, com inscrições pelo site www. ppgd.ufpr.br .

As Jornadas, já famosas em todo o Brasil, reúnem especialistas na matéria e consolidam o Núcleo de Direito e Psicanálise do PPGD-UFPR como um dos mais importantes e prestigiados do país, com larga projeção internacional pela qualidade da investigação de ponta que vem desenvolvendo.

Para manter o altíssimo padrão das Jornadas anteriores e confirmar o PPGD-UFPR como um dos três Programas com nota de excelência (seis) na Capes (os outros são o da UFSC e da USP) vêm a Curitiba vários professores do Brasil e do estrangeiro. Dentre eles destacam-se os professores Dirk Fabricius, catedrático de Direito Penal da Universidade de Frankfurt, Alemanha; Jorge Douglas Price, titular de Filosofia do Direito e Teoria do Estado na Universidade de Comahue, Argentina; Alicia Ruiz, magistrada do Tribunal Superior de Justiça de Buenos Aires e titular de Filosofia do Direito na Universidade de Buenos Aires UBA; Felipe Pereirinha, psicanalista, membro da Antena do Campo Freudiano de Lisboa e professor da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias de Lisboa, Portugal; além de José Martinho, psicanalista, membro da Antena do Campo Freudiano de Lisboa e catedrático da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias de Lisboa, Portugal.

A eles somam-se juristas, psicanalistas e professores brasileiros do mais alto prestígio como Juarez Tavares (UERJ), Juarez Cirino do Santos (UFPR), Salo de Carvalho (PUCRS), José Antônio Peres Gediel (UFPR), Albano Marcos Pepe (Fadisma), Alexandre Morais da Rosa (Univali), Cristiano Paixão (UNB), Cyro Marcos da Silva (Psicanalista, ex-magistrado, ex-professor de direito processual civil da U. F. de Juiz de Fora), Noêmia Santo Crespo (UFES), Elisabeth Bitencourt (Escola Lacaniana de Psicanálise do RJ), Mauro Mendes Dias (Escola de Psicanálise de Campinas), Agostinho Ramalho Marques Neto (Faculdades São Luís MA), Jeanine Nicolazzi Philippi (UFSC), Fernanda Otoni de Barros (PUCMINAS), Wael de Oliveira (Associação Psicanalítica de Curitiba) e Hugo Mengarelli (UFPR, Biblioteca Freudiana de Curitiba).

Como ocorreu nos anos anteriores, no primeiro dia, 4/6/08, haverá o lançamento do livro referente às IV Jornadas, realizadas em 2007, o qual tem como título “Direito e Psicanálise Interseções a partir de “O Mercador de Veneza” de Willian Shakespeare”. Antes, porém, aproveitando-se o filme de Marc Forster (diretor suíço-alemão, famoso pelos filmes “A Última Ceia”, “Em Busca da Terra do Nunca” e “Mais Estranho que a Ficção”), far-se-á uma mostra, de modo a dar conhecimento da temática a quem, eventualmente, não tenha lido o livro. Filmado em grande parte na China ocidental, por cenários muito semelhantes ao do Afeganistão, tem diálogos da primeira fase (quando as personagens são crianças) em língua Dari, uma das principais dentre as faladas no país. Ameaçadas, quatro das crianças que protagonizaram o filme tiveram que fugir de Cabul, tudo em razão da cena de abuso sexual. Tal cena, por sinal, ligada à questão da etnia, levou o governo afegão a proibir que o filme fosse levado naquele país.

O roteiro é de David Benioff e suprime diálogos, pensamentos, sonhos e atos que são imprescindíveis ao livro. Assim, ele tira o glamour do texto, o qual pauta na sexualidade os furos da existência, muito embora do referido roteiro tenha participado o próprio Khaled Hosseini, quiçá para minimizar o impacto produzido pelo livro, algo sempre arriscado quando em jogo estão interesses religiosos envolvendo posições fanáticas.

Ele, o livro (The Kite Runner, no original), como se sabe, foi um dos maiores best sellers do início da década e vendeu, em 2004, mais de 2 milhões de exemplares só nos Estados Unidos, tendo permanecido na lista dos mais vendidos do New York Times por mais de um ano. Teve tradução para mais de 42 línguas e foi um imenso sucesso internacional do mercado editorial.

No Brasil foi traduzido por Maria Helena Rouanet e publicado pela Editora Nova Fronteira com 368 páginas, tendo vendido mais de 1,5 milhões de exemplares.

Escolhido como pano de fundo das Jornadas deste ano, escapou da tradição que evocava clássicos da literatura para tal fim, como foi com “Crime e Castigo”, de Dostoiévski; “1984”, de George Orwell; “O Estrangeiro”, de Albert Camus; “O Processo”, de Franz Kafka, além do precitado “O Mercador de Veneza”, de Shakespeare, dos quais se produziram livros de grande repercussão no campo da interseção e da interlocução entre o Direito e a Psicanálise, alguns com edições esgotadas.

“O Caçador de Pipas”, da sua parte, é um livro absolutamente inserido no tempo atual e abre, assim, um sem número de temas plausíveis de discussão, dos quais os mais difíceis, por evidente, são os que tratam da estrita interseção entre os dois campos.

De qualquer modo, Khaled Hosseini, como poucos, conseguiu ressaltar a diferença entre Oriente e Ocidente, cristãos e muçulmanos, países ricos e países pobres ou mesmo ricos e pobres se, de fato, dela se pudesse falar, hoje, senão como imagens argumentativas de um mundo cada vez mais global, neoliberal, bélico e movido pelo ódio, no qual a única dicotomia possível já se disse é aquela entre incluídos e excluídos. Um mundo de consumo de um gozar a todo custo e de consumidores onde, cada vez menos, tem lugar para o amor e a crença no amor, tributária de toda esperança de futuro democrático.

Como tem mostrado Mauro Mendes Dias (em Seminários durante o atual semestre nas atividades do NDP-PPGD-UFPR), quando o ódio preside as relações ou a maior parte delas , querendo o sujeito gozar por aí e sempre; quando a velha crença numa transcendência religiosa vira fanatismo de seitas movidas pelo lucro (elas também!); e quando a maior glória dito pela palavra é o sujeito se auto-explodir, como terrorista, para destruir o outro e negar definitivamente a diferença, resta pouco para se cobrar daquilo que foram as promessas da modernidade. E não porque foram satisfeitas. Em definitivo, está-se, nos países periféricos, longe disso. Assim, não só as ditas promessas não foram cumpridas (como vêm mostrando os sociólogos e cientistas políticos principalmente desde os anos 70: é aqui que nasce a trilogia de Hayek, a “bíblia” dos neoliberais, embora ele não fosse nem um, nem outro e não passasse de um mero economista pedestre e mal-resolvido), como agora, no avanço global do neoliberalismo, vai-se, passo a passo, perdendo todas as esperanças de que poderão, um dia, virem a ser.

Isso reclama, como é primário, um retorno urgente à Política, sem descartar a velha acepção grega, de modo a que a res pûbl?c¿ não seja como tem sido a expressão dos interesses individuas levados ao superlativo, ou seja, imposição daquele que ganha na competição diuturna, mesmo porque nas atuais bases “o resultado do jogo” já está preordenado e para quem ousar vilipendiar a ordem prévia, o destino é a morte simbólica, muito mais perversa que aquela real.

Vale, então, o alerta de Dante, na porta do Inferno: “Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate”. “Deixai toda a esperança, ó vós que entrais”. (Canto III).

O interessante é que, para todos, a castração imposta pelos limites produz desejo e, assim, o mundo é ou era conduzido por ele. Agora, porém, quando a cultura local vale cada vez menos e o império passa a ser daquilo que Ignacio Ramonet chamou de “pensamento único”, a falta da diferença não tem permitido desejar mas, tão-só, gozar. Tal leitura, que leva a marca de Charles Melman (“O Homem sem Gravidade”) e Dany-Robert Dufour (“A Arte de Reduzir as Cabeças”), é altamente instigadora, mas longe está de ser pacífica, mormente quando se pensa a partir do terceiro mundo.

De qualquer sorte, o livro e sua temática dão a possibilidade de um encontro com a vida do tempo atual e os mais variados matizes de uma nova forma antes desconhecida do exercício do poder.

A culpa (Amir imagina que seu pai não gosta dele porque teria “roubado-lhe” a mãe, a qual morre no seu parto) e a mentira (Baba, pai de Amir, não lhe conta que Hassan é seu irmão e isso, para ele, parece ser compatível, quando (re)significado, como a causa de quase todos os males) ganham novas dimensões porque se vive em uma sociedade em que ser feliz, como resultado do agir, é conditio sine qua non do existir. Ao contrário do que se passava antes da era neoliberal, isso não é medido pela “cultura local”. Deste modo, parece incontroverso que ninguém, agora, da conta de um tipo de felicidade assim (pagando um preço muito alto pela inevitável derrota), mas a impressão que se tem, ao fim e ao cabo (e que virá à lume nas Jornadas) é expressa de forma primorosa num adágio italiano: “tutto il mondo é paese”.


Por: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é professor titular de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Especialista em Filosofia do Direito (PUCPR); mestre (UFPR); doutor (Universidade de Roma “La Sapienza”). Chefe do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da Faculdade de Direito da UFPR. Coordenador do Núcleo de Direito e Psicanálise do PPGD-UFPR. Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil pelo Paraná.


O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 01/06/2008.

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