domingo, 8 de junho de 2008

Memórias do cárcere

Raul comemora dois aniversários por ano. Um, o da idade, 57 anos completados em janeiro e que lhe garantiram uma barba esbranquiçada. Outro, dia 15 de agosto de 1984, é a data em que ingressou no Presídio Central, sua atual moradia. Em 24 anos, ele só saiu duas vezes da maior e mais lotada prisão gaúcha. Ambas para trabalhar no regime semi-aberto, numa colônia penal, e no anexo de um presídio em Charqueadas. O resto do tempo passou atrás das grades do Central. Raul é o que os inquilinos do Central chamam de "mão na cabeça", um assaltante. Desde os anos 70, acumula penas por esse tipo de crime. As duas vezes em que Raul retornou ao Central foi após ser preso em flagrante, por roubo.

Apesar de ladrão tarimbado, como ele mesmo reconhece, Raul conquistou direito a trabalhar em função do bom comportamento na prisão. Orgulha-se de ter oito netos. Um dos filhos está prestes a se formar pedagogo. Gosta de contar histórias. "O que mais tenho é tempo", justifica.

Aqui, um resumo dos seus 35 anos de vivência no sistema carcerário, 24 dos quais no "inferno chamado Central", como apelidou:

Gato Frito

"Carne sempre foi uma raridade na hora da bóia. A gente sabe que ela entra na prisão, mas nem sempre chega na cadeia. Como a prisão é cheia de gatos, a gente pegava eles nas celas, matava a paulada e dava para o cozinheiro fazer. Na cozinha fiz muito gato frito com salada de maionese. Quem não provou, não sabe que delícia é."

Rebelião da comida

"Agora melhorou muito, mas a comida era tão ruim que uma vez gerou rebelião. O mondongo cheirava tão mal que nem o cachorro queria comer. Aí um grupo de presos se rebelou. Transformaram as barras da cela em estoque (faca improvisada) e me convidaram para pegar os guardas. Não fui, minha cana era de sete anos, para que responder por homicídio? Eles se atracaram, ficou um monte de ferido, mas ninguém morreu."

"A gente é patife"

"Sou marceneiro por formação, mas virei sem-vergonha nos anos 70 e fiquei nessa vida. Me desculpa a franqueza, mas a gente é patife mesmo. Os homens até que dão oportunidade, mandam para o semi-aberto. O que eu fiz? Saí, botei umas mãos na cabeça por aí e voltei com mais processos do que quando entrei. Agora me condenaram a mais 11 anos, estou recorrendo. É muito, mesmo que eu tenha cometido o assalto. Vou tentar o semi-aberto em 2009, mas não sei o que farei quando sair."

Preso com moto

"O leva e traz entre as celas do fundão do Central e os agentes era feito por um preso, de moto. Isso mesmo, eu vi a moto. Entrava e saía de tudo ali: droga, dinheiro, cigarro... Preso e agente era tudo misturado, a maior farra. Cocaína e pedra não existiam, mas maconha entrava. Não me perguntem como um preso tinha moto, não sei e nem quero me comprometer."

Só vale, sem dinheiro

"Hoje até que é bom, a gente recebe dinheiro pelo trabalho, a família fica garantida. Até os anos 80, o preso recebia vale, de três em três meses. Era obrigado a gastar com crédito na cantina do Central, administrada por um agente penitenciário ou alguém ligado a ele. O problema é que ali o preço era três vezes o valor da rua. A gente sempre ficava devendo, não acabava nunca, tipo escravo."

Visita íntima

"Nos anos 70, não havia visita íntima. Nada. A gente ficava na pior, sem mulher. O máximo que conseguia era um beijo, na capela, local para as visitas, nada íntimas. Aí na Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ) improvisaram uma novidade, num canto do muro, aí pelo começo da década de 80. Quatro presos seguravam um cobertor, outro preso e sua mulher deitavam num colchão embaixo e faziam o que tinham de fazer. Depois, virou um acampamento melhorzinho e, por fim, os presos tiveram direito a uma cela só para contato íntimo. Coitada da minha mulher, que agüenta isso há 39 anos."


Zero Hora.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog