sexta-feira, 20 de junho de 2008

Especialistas: sociedade apática favorece ilegalidades

Dias depois de uma guarnição do Exército entregar três jovens de uma favela no Rio para traficantes de outra executarem suas sentenças de morte, num caso que chocou a sociedade, cientistas sociais não eximiram a própria sociedade de responsabilidade.



Reunidos no seminário "Humanismo, direito e cidade: debates interdiscilplinares", realizado em 16 de junho no Centro de Estudos Direito e Sociedade (Cedes) do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), especialistas em segurança pública apontaram a crise moral, a pluralidade de éticas públicas, o conservadorismo, a apatia e a desarticulação social como fatores que vem contribuindo para o crescimento da ilegalidade nas instituições de segurança pública e de direito.

O cientista político Luiz Eduardo Soares, secretário Municipal de Valorização da Vida e Prevenção da Violência de Nova Iguaçu (RJ), lembrou que 1.330 pessoas foram mortas pela polícia no Rio de Janeiro em 2007, um recorde histórico e provavelmente subestimado, uma vez que há casos nem registrados. Para ele, chamar de genocídio não seria exagero. “Os números são análogos a situações de guerra, embora não estejamos em guerra”, disse.



O mais extraordinário, entretanto, para Soares, é a apatia da sociedade em relação ao que se passa ao seu lado. Para ele, o que torna esse genocídio possível é a insensibilidade da opinião pública e a incapacidade da sociedade organizada de fazer algo a respeito.



“Por que pesquisadores, movimentos e ONGs não reagiram para mudar esse quadro? Os movimentos são fragmentários. Não enfrentamos o fenômeno com uma agenda política organizada. Não nos qualificamos intelectualmente e nem nos articulamos politicamente para pensar se é possível alterar as instituições coercitivas do Estado e como incorporá-las ao projeto democrático”, avaliou.



Soares criticou o presidente Lula por apoiar as operações policiais no Alemão que resultaram em muitos mortos, dizendo que “não se entra na favela apenas com flores”: “Surpreende o presidente, que é de um partido de esquerda, reiterar o discurso usual do uso da força contra a força, como se realmente se tratasse disso.” Secretário Nacional de Segurança Pública em 2003, Soares questiona: a segurança exige sempre o pronto emprego da força? Como exercitar mediações de conflito viáveis?



Polícias: esquerda menosprezou o tema



Para o cientista político, que participou da mesa "Democracia e disciplina: as Ciências Sociais e as instituições do Direito", neste momento em que a Constituição de 1988 completa 20 anos, falar do Estado Democrático de Direito e da sua real implementação implica em se falar em polícias.



Soares acredita que a Constituinte de 1988 levou a um “casamento perverso” entre a direita e a esquerda. Por um lado, formaram-se lobbies de policiais para a preservação do status quo organizacional. Por outro, as esquerdas se calaram por não considerarem a temática pertinente, preocupando-se só com “questões nobres e estruturais”. As instituições de segurança pública seriam um tema para os conservadores.



Segundo Soares, essa desarticulação também leva a uma regressão no direito penal: “Fomos incapazes de politizar o tema da segurança pública, e a indignação pública estimula lideranças conservadoras que sugerem mais criminalização, o enrijecimento das penas e posturas que caracterizam um código já ultrapassado.”



Milícias, o 'gato' do orçamento



Um olhar atento para as polícias do Brasil leva à conclusão, de acordo com o especialista, que as milícias nascem em conseqüência de um engate entre um orçamento público insuficiente e o comportamento dos gestores: como o orçamento é incapaz de prover salários correspondentes às necessidades dos profissionais, eles buscam “bicos” em áreas análogas, como a segurança privada informal. Os gestores, por sua vez, fingem que não vêem e não fiscalizam, porque sabem que a realidade é perversa.



“É o budget cat, o 'gato' do orçamento, que alia práticas ilegais ao orçamento público insuficiente. Nenhum gestor jamais respondeu o que fazer com a segurança privada”, disse.



Segundo Soares, há 550 mil profissionais de segurança pública no Brasil e estima-se que o triplo - cerca de 1.800 mil – trabalhe em segurança privada, sem direitos trabalhistas. As mortes são muito mais numerosas em “bicos”, que vão desde casos “benignos” até casos extremos, como o tráfico de armas, o controle ilegal de vans e as milícias.



Crise moral

O professor Michel Misse, do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ), se preocupa com a tradição no Brasil de se referir à polícia como tendo mercados ilegais, e não só a policiais, mas às próprias instituições. Essas ilegalidades fariam parte de uma cultura política que quem não obedecesse seria considerado “um otário fora da realidade”.



“O Brasil está em crise moral há muito tempo”, ratificou, fazendo alusão ao samba que diz “se gritar pega ladrão / não fica um, meu irmão”. Ele lembrou que foi nos anos 50 que surgiu no Brasil o primeiro Esquadrão da Morte, criado pelo chefe de polícia do presidente Juscelino Kubitchek, Amauri Kruel, com a tarefa de eliminar os marginais.



“Isso se torna uma prática quase banal. Surpreende que nunca tenha provocado uma reação social”, afirmou Misse. Ele citou uma pesquisa que indica que 25% das pessoas concordam com ações violentas contra ladrões. “Um país que se pensa constituído de ladrões, que tem essa auto-concepção, ao mesmo tempo convive com a idéia de que é preciso eliminar os ladrões, na lógica do ‘menos um’, que não pode ser desvinculada do processo de criminalização de suspeitos”, refletiu.



O professor acrescentou que o princípio do mercado invadiu o princípio da soberania, com a privatização de cargos, o clientelismo político e até o possível envolvimento, segundo acusações, de juízes e desembargadores. Para ele, o que motiva esse modelo de conduta é a representação de “colônia” pela sociedade civil em relação à sua “metrópole”, o estado. “Mama-se nas tetas do Estado, sonega-se imposto, e ao mesmo tempo exige-se que o Estado solucione todos os problemas da sociedade civil”, ironiza.



Kant: instituições administram conflitos entre desiguais

O antropólogo Roberto Kant de Lima, do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas da Universidade Federal Fluminense (UFF), relacionou o modelo piramidal, repressor e nem sempre igualitário aplicado pelas instituições de direito na administração de conflitos à tendência das pessoas de acharem que a obediência às regras seria inútil; importante seria saber o que as autoridades iriam achar ou como iriam punir. Trataria de conflitos entre desiguais, e não iguais “Nesse sistema de culpabilidade, se não te pegarem não tem problema”, disse.



O professor citou pesquisas empíricas qualitativas que demonstram a pluralidade de éticas públicas entre os legisladores. “As instituições não estão preparadas para as suas próprias propostas”, afirmou. Outro problema, segundo Kant, é que as corporações policiais e o Judiciário competem entre si, e acabam virando parte do conflito.



Ele criticou a visão centralizadora da segurança pública, na qual a sociedade leva à instituição policial conflitos indigestos, achando que ela vai dizer o que é direito. “As pessoas não querem processos, querem decisões justas feitas por alguma autoridade. E muitas acham que segurança é não ter crime e ter a polícia matando marginais. Não se concebe a previsibilidade. Não existe instituição no Brasil que analise a natureza do conflito”, enfatizou.


Comunidade Segura.

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