quinta-feira, 12 de junho de 2008

Entrevista - Suzana Varjão

'Nossa sociedade é feita de bolhas e vãos'


Após 20 anos de trabalho no jornal A Tarde, da Bahia, a jornalista Suzana Varjão decidiu que era hora de mudar. Sempre atuante na defesa dos direitos humanos, Suzana fez mestrado em Cultura e Sociedade na Universidade Federal da Bahia e ajudou a criar um núcleo de estudos sobre mídia e violência na Faculdade de Comunicação da mesma universidade.



Há sete anos, com o apoio da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi) e do Fórum Comunitário de Combate à Violência (FCCV), Suzana e sua equipe começaram uma pesquisa cujo objetivo era analisar como o discurso produzido pela mídia contribuía para reafirmar as relações sociais e de poder existentes na sociedade.



A motivação para a realização da pesquisa surgiu a partir de um ato de violência ocorrido muito mais próximo de Suzana do que os crimes que lia diariamente nas páginas diárias do jornal onde trabalhava: o seqüestro, seguido de violência sexual e assassinato de uma colunista do jornal. “Até hoje me emociono ao relembrar disso apesar de trabalhar mais tecnicamente com a questão da violência,” recorda.



Do estudo nasceu o livro "Micropoderes, macroviolências", que a escritora define como sendo o “resultado de sete anos de militância pela causa dos direitos humanos”. O lançamento nacional do livro aconteceu em Brasília, durante o IV Encontro da Rede Desarma Brasil, onde, entre um debate e outro, Suzana Varjão conversou com o Comunidade Segura.



Do que trata o livro Micropoderes, macroviolências?



Esse livro é fruto de um trabalho de pesquisa e resultado de sete anos de militância pela causa dos direitos humanos. Ele trata especificamente do recorte entre mídia e violência.



Quais foram as fontes de trabalho para a pesquisa?



Esse trabalho foi realizado a partir da leitura minuciosa dos três jornais de maior circulação na capital da Bahia e que fazem parte do Movimento Estado de Paz (A tarde, Correio da Bahia e Tribuna da Bahia). A partir dessa leitura produzimos um estudo sobre o inconsciente da comunicação, ou seja, o que se produz em termos de discurso sem que se tenha consciência disso. Em outros termos, de como os discursos estruturais vêm contribuindo para não apenas reproduzir, mas produzir o quadro de violências.



Quais são as discussões realizadas no estudo?



O estudo tem vários debates que permeiam a sociedade brasileira que são de extrema importância, incluindo a questão da arma de fogo. A arma de fogo é um grande vetor de mortes e confirmamos na pesquisa informações que vêm sendo apontadas por organizações que trabalham com esse tema: que mais de 80% das mortes são perpetradas com armas de fogo. Também abordamos a questão da maioridade penal e da violência no universo infanto-juvenil.



Mas o foco é a relação entre mídias e violências...



É. Tentamos demonstrar, por meio de um estudo o mais próximo possível do científico, como, em nome da ciência, nós, comunicadores, legitimamos teorias da comunicação que não são favoráveis para a sociedade brasileira. Demonstramos, no caso de Salvador, que reflete a realidade do Brasil, como estamos legitimando homicídios contra pessoas negras e pobres.



Não porque saibamos que estamos fazendo isso, mas porque estruturalmente estamos produzindo esse tipo de discurso que vem do aparato repressivo do Estado. Ouso dizer hoje que a grande voz do noticiário sobre violências é do aparato policial que ainda não se modernizou e isso traz conseqüências gravíssimas.



Você não acha que toda a discussão sobre segurança hoje e o diálogo entre governo e sociedade civil e a academia não acaba mudando o discurso da mídia?



Com certeza. Nós, da mídia, somos um microcosmo da estrutura social. Do mesmo modo que estávamos até agora produzindo um tipo de discurso, também reproduzimos a partir de outros tipos de discursos como os que surgem aqui (no encotnro da Rede). Nós somos pautados mesmo pela sociedade. Dessa forma, mostramos como se dá o agendamento da mídia para o bem ou para o mal. Este tipo de evento que está acontecendo aqui da Rede Desarma Brasil mostra como isso é importante para pautar a mídia e desconstruir um outro tipo de discruso.



E qual é a tendência hoje da cobertura de segurança pública pela mídia?



Há uma outra tendência de cobertura midiática. Salvador, por ter estudiosos pensando apenas esse assunto evoluiu muito nesse aspecto. O jornal A Tarde é o segundo em relação à qualidade da cobertura sobre violência. Hoje, os profissionais cobrem segurança pública e não crime como costumava acontecer.



E como está o diálogo entre a academia e os profissionais de mídia?



Tivemos um grande avanço. De sete anos para cá, a gente vem insistindo muito na necessidade de haver uma interlocução entre a academia e a sociedade em geral. Até dentro da própria academia, esse tipo de pesquisa (sobre segurança pública) não tinha muito valor.



E como isso se reflete especificamente na Bahia?



Nós conseguimos estruturar um núcleo de estudos na Faculdade de Comunicação da UFBA e, a partir daí, transformamos Salvador numa grande conferência a céu aberto. Quando começamos esse trabalho, simplesmente não se discutia violências em Salvador. Como cidade turística, havia uma política oficial de não se discutir esse tema. Mas essa política não deu certo porque não se esconde lixo debaixo de tapete. Mas digo que há uma disposição muito grande para o diálogo. Essa pesquisa, por exemplo, é fruto de uma aliança entre a academia e a sociedade civil organizada. Eu fui apenas mediadora.



Você vê profissionais de comunicação se especializando no tema da segurança pública?



Com certeza, eu chego a afirmar que teremos uma nova geração de jornalistas. São profissionais que estão fazendo o caminho inverso: estão saindo do mercado e voltando para a academia. E isso vai dar uma outra dimensão para a comunicação.



Você acha que o fator comercial é forte? Violência vende jornal?



Acho que ainda existe sim, mas não creio que seja o mais importante. O mais importante é a falta de consciência do que nós estamos produzindo estruturalmente independentemente da nossa vontade objetiva, da vontade objetiva inclusive dos proprietários dos meios de comunicação. Se eles tomarem consciência que está sendo produzido um discurso que ficou lá atrás no tempo da escravidão e que não interessa sequer à classe dominante, com certeza teremos uma transformação mais rápida e mais significativa.



Você não acha que seria ingenuidade desses profissionais acreditarem que estão fazendo a sua parte apenas por denunciar?



A denúncia em si faz mais mal do que bem. Se você só noticia como aconteceu o crime, está, na verdade, ensinando como se cometer crime. A denúncia tem que vir junto com a discussão, com a busca de soluções, com debates e análises. A prática de noticiar crimes na mídia está envenenando mais a sociedade do que qualquer outra coisa.



Na sua opinião, qual deve ser o papel da mídia?



A mídia tem um papel importante que não se pode relegar. As grandes narrativas hoje do capitalismo e estruturadoras do quadro social são as narrativas midiáticas. A gente está assistindo à efetivação do que McLuhan nos chamou a atenção tempos atrás: o meio é mensagem. Nós estamos estruturando esse quadro social mas sem consciência de que estamos fazendo isso.



No seu livro você fala de bolhas e vãos. O que são essas bolhas e vãos?



No livro nós reavivamos a relação que existia entre a sociedade escravista baiana para os dias atuais. Naquela época, Salvador era a cidade das casas grandes e das senzalas, hoje é a cidade das bolhas e dos vãos. Assim, demonstramos que não saímos da sociedade escravista.



As bolhas representam os espaços da classe média branca – ou quase branca – tentando nos blindar contra essas violências, e os vãos são as periferias onde moram as pessoas negras e pobres – as antigas senzalas. Esses vãos são rotineiramente invadidos e seus moradores assassinados sem os mesmos protestos de quando acontece isso nas nossas bolhas.


Comunidade Segura.

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