quinta-feira, 5 de junho de 2008

Entrevista - Cláudio Ferraz e Wânia Mesquita

'A população não quer milícia, quer segurança'


Convidamos um gestor de segurança pública e uma pesquisadora para falar sobre “milícias e poderes locais”. Cláudio Ferraz, delegado titular da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e Inquéritos Especiais (Draco) da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, destacou a dificuldade de combater a ação das milícias devido ao seu vínculo com políticos. Ferraz está à frente de investigações sobre grupos de milicianos no estado.



A doutora em sociologia Wânia Mesquita, do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (Iuperj), que participa da pesquisa "Rompendo o cerceamento da palavra: a voz dos favelados em busca do reconhecimento", ressaltou o estabelecimento de mecanismos de silenciamento de uma comunidade por um grupo de “mineira”. A pesquisa é financiada pela Faperj e coordenada pelo professor Luiz Antonio Machado da Silva (IFCS/UFRJ e Iuperj/Ucam)



CLÁUDIO FERRAZ



O que são milícias?



Milícias são grupos que dominam determinadas áreas. Hoje, milícia é o nome fantasia de grupos de policiais ou agentes do Estado que dominam uma determinada região e se apresentam como defensores da própria população local contra a ação do tráfico. Isto porque se identificou que o traficante é o grande problema da segurança.



Nós definimos, tecnicamente, milícia como estes grupos de policiais que se apresentam em circunstâncias de domínio territorial, mas qualquer grupo com essa característica, tanto a milícia quanto o traficante, pode ser considerado como um grupo miliciano. Os milicianos que se intitulam protetores em determinada região atuam da mesma forma que o traficante.



Qual o contexto histórico em que surgem as milícias?



Há um único motivo para o surgimento desta milícia: a falta de Estado eficiente. Em um determinado momento histórico, a população foi subjugada por traficantes de drogas que dominavam a região e pela violência gerada pelo confronto entre eles e a polícia. Como não têm segurança nem acesso adequado à Justiça, surgiram estes grupos de policiais que, em um primeiro momento, fizeram com que a população os vissem como figuras emblemáticas, aqueles que resolvem as coisas com uma sabedoria oriental. Na verdade, o objetivo destes grupos é dinheiro e poder.



Qual o papel da população local neste surgimento?



A população não quer milícia, tráfico ou qualquer um que cerceie sua liberdade. Também não quer um Estado policial com 500 homens armados na comunidade. A população quer segurança.



O que me choca é o absoluto domínio da população em determinada área, chegando ao requinte de ocupações irregulares promovidas por estes grupos que, inclusive, arregimentam quem vai morar no lugar, definem quem é o homem forte naquela comunidade, que se impõe pela morte, pela violência, pelo domínio político e das atividades comerciais na região.



Por que houve um crescimento do número de milícias em favelas do Rio nos últimos 18 meses?



Há caso de favelas que foram criadas pelos próprios interessados em criar áreas de domínio. Isto é um grande negócio, além de um verdadeiro retorno ao passado: cada um pega o seu pedacinho de terra e passa a cobrar pelos serviços oferecidos ali. Este é um dos motivos do aumento das milícias nos últimos meses. Mas a grande contribuição para o surgimento das milícias é exatamente não haver uma normalização em toda a cidade, um serviço de segurança e justiça criminal. É daí que surgem esses grupos de “paladinos”, como acontece no mundo inteiro. Onde há espaço, ele vai ser preenchido.



E como este fato se relaciona com o aumento da repressão contra o tráfico de drogas?



Na verdade, é possível que o próprio consumo de drogas tenha diminuído. Até porque houve uma mudança do perfil desse mercado com a chegada das drogas sintéticas e o surgimento de “esticas” (ponto de venda de drogas fora da favela). O próprio consumidor não quer comprar nas bocas da favela por causa da violência.



As favelas perderam muito daquela atratividade e isso é um diferenciador. Essa repressão causou uma situação de beligerância nessas áreas e, de certa forma, se pode dizer que até criou o romantismo de algumas milícias que surgiram para reduzir essa brutalidade na área. Isso surge a partir da própria pressão natural da população por conta desses grupos se digladiando, o que fez com que a polícia começasse a atacar cada vez mais.



E como o surgimento desses grupos se relaciona com as esferas de poder?



Em 2005 houve um incremento da violência brutal porque esses grupos começaram a disputar mercado e apoio político. Há milícias que apóiam candidaturas de deputados federais, que apóiam indiretamente senadores, deputados estaduais, vereadores. Existe apoio político para esses grupos, que definem quem vai ganhar as eleições naquele lugar e que detêm o poder de vida e morte das pessoas naquela comunidade. O terror é enorme. São mortes emblemáticas, quando se comete homicídio não se comete a toa, se comete para criar um terror absoluto.



É possível comparar a relação entre polícia e milícia e entre polícia e grupos envolvidos no tráfico de drogas nas favelas?





Você tem que admitir que essas milícias são formadas por agentes do Estado. Então isso cria inegavelmente um problema grande. Por exemplo: Nós temos aqui uma milícia que dominava toda Zona Oeste, e chefiada por policiais, que, por sua vez, tem um deputado e um vereador. Eles são policiais que trabalham no teu mesmo ambiente, que conhecem a tua rotina, sabem quem você é. Por exemplo, se for prender um traficante em uma comunidade da Zona Norte, dificilmente você vai encontrá-lo em um shopping na Zona Sul. E o miliciano você encontra. Eu já fui prender milicianos em “points” em Ipanema e no Leblon. Então eles freqüentam. Há um mesmo nível. Eles sabem onde você trabalha, sabem como você trabalha. Eles têm grupos de apoio no ambiente político, têm grupos de apoio na justiça. Ou seja, é um outro tipo de personagem. E que cada vez se transforma em uma coisa mais perigosa porque é cada vez mais para defender a remuneração, que não é pequena, eles são obrigados a buscar os meios necessários para não ter perda de espaço. Então o risco é bem maior. Por exemplo: A gente costuma brincar na polícia que prender “pé de chinelo” é fácil. É como se fossem dois mundos. Você vai lá prende o “Pé de chinelo” você tem um distanciamento grande. Milícia formada por policiais é uma coisa meio indiferente. Porque ele está no teu “metier”, ele sabe como você trabalha, ele sabe a freqüência do teu raciocínio. Ele sabe a lógica do teu trabalho. Então não é a mesma coisa. Não é mesmo. É bem diferente. O risco é infinitamente maior.





Qual seria a aceitação pública desse discurso?



O discurso é de que a milícia está lá combatendo o traficante. Eu até acredito que algumas cabeças simplórias imaginam realmente que ele está combatendo. Mas, por exemplo, nós temos registros de policiais de milícias que estupram, matam, roubam, contratam ex-policiais expulsos da polícia porque cometeram crimes, contratam marginais para poder servir de patrulheiros no domínio da sua área de recruta. Ela passa a ser uma área completamente dominada. E como não é uma área legitimamente atingida, o domínio é feito pela força. A caracterização do discurso no primeiro momento é a de combate do tráfico de drogas, mas não é o que vemos.



O raciocínio é o seguinte: a população quer segurança, tranqüilidade, liberdade e ordem. Como se chegará a isso não é problema dela. Qualquer grupo que entre em uma comunidade para se impôr será rejeitado. Agora, qualquer um que entre e diminua o problema da violência terá aceitação. O cidadão quer tranqüilidade, mas ele já desistiu de reivindicá-la. O que ele pensa? “Se chegarem aqui e me oferecerem uma redução na barbárie, eu estou satisfeito.”



WÂNIA MESQUITA



O que são milícias?



Em uma favela da zona oeste onde realizamos uma pesquisa, este grupo é denominado pelos moradores como “mineira” e é constituído por policiais e bombeiros, na ativa ou aposentados, além de civis, que se impõem sobre a população por meio de expedientes diversos, dentre os quais destacam-se o recurso ao medo e à violência.



Qual o contexto histórico em que surgem as milícias?



Apesar de já serem conhecidas há algum tempo, pelo menos desde a década de 70, as também chamadas milícias armadas, em algumas áreas denominadas polícia mineira, cresceram e ganharam destaque na mídia e nos discursos de algumas autoridades públicas por conta de suas disputas territoriais com traficantes de drogas e do conseqüente estabelecimento de um novo tipo de domínio em diversas favelas cariocas.



Esses grupos se auto-investem da incumbência de impedir a desordem (sobretudo dos conflitos entre facções de traficantes) e se apresentam na condição de único fiador capaz de assegurar paz e tranqüilidade na favela. Como resultado, seus agentes impõem aos moradores uma ordem baseada em soluções extralegais - violentas e autoritárias -, na qual os dominantes tentam justificar a violência como meio de garantir uma sociabilidade pretensamente livre dos perigos representados pelo tráfico e, por extensão, de diversos tipos de condutas consideradas moralmente impróprias.



Quais são as conseqüências para a população local?



Apesar da propalada idéia de apaziguamento, esta ordem não consegue desfazer o sentimento de insegurança dos moradores. As conseqüências das faces da violência nutrem uma desconfiança generalizada e estabelecem mecanismos de silenciamento dos moradores, configurando a construção de uma moralidade sem “cidadãos”, baseada na submissão ilegítima e passiva.



E quais são os mecanismos usados para isso?



Seus agentes exercem funções de administração de negócios em diversas atividades do território, que vão desde a venda de botijões de gás à cobrança por serviços de televisão a cabo clandestinos e ao controle do transporte alternativo de vans. Cobram, ainda, do comércio local pela proteção contra roubos e furtos, o que permite que, aos poucos, o controle se amplie para muitas das esferas da vida cotidiana local. Quem não se submete a este pagamento se expõe ao risco do uso da força e, neste sentido, o pagamento da cobrança se apresenta como uma proteção forçada.



E como este fato se relaciona com o aumento da repressão contra o tráfico de drogas?



Como não há dados que possam estabelecer diretamente esta associação, estas ações podem decorrer, por um lado, da política de enfrentamento adotada pelo governo do estado do Rio de Janeiro contra bandos de traficantes, como, também, derivar de uma tentativa do Estado de atuar de forma mais ostensiva frente a uma possível territorialização das milícias nessas áreas. De todo modo, essas ações repressivas acabam por incidir de maneira violenta sobre os moradores das favelas, que cotidianamente ficam à mercê desses enfretamentos e de todos os tipos de violências que podem advir daí.



Que tipos de relações operam entre os diferentes grupos – milícia(s), associação de moradores, agências governamentais, população da favela, ongs, entre outros - para o exercício da ordem local?



A partir da pesquisa que realizamos com moradores de uma favela da Zona Oeste, foi possível identificar que a associação de moradores, ao longo do tempo, foi disputada por membros da “mineira” e, dentre as diversas atividades que seus agentes estabelecem, há relatos de cobrança de uma taxa aos moradores e aos comerciantes para garantir a mediação de conflitos cotidianos, e, sobretudo, para garantir a ordem através da repressão a atividades criminosas. A regulação do espaço social se dá em função do consenso acerca do significado e do papel da associação enquanto mediadora dos conflitos rotineiros, muito embora, por vezes, não seja possível precisar se eles agem em seu nome ou em nome da “mineira”.



Na perspectivas deles há legitimidade consentida ou coação?



Os seus empreendimentos se orientam na direção de um recurso rotineiro da força para obter interesses econômicos e para controlar áreas inteiras de atividades notadamente lucrativas. Pode-se observar que estas taxas, ainda que pesem no orçamento dos moradores, não conseguem gerar qualquer reclamação explícita ou forma de mobilização popular. Pelo contrário, o que se observa é um movimento silenciado, que não toma a forma definida de indignação ou denúncia. Diante dos expedientes utilizados para preservar este controle, a submissão ao pagamento das taxas se torna a única resposta possível.



Existe uma tendência de diferentes setores sociais em optar por segurança privada (formal e informal). De que maneira isto se relaciona com o discurso da segurança pública no âmbito da defesa do Estado Democrático de Direito?



O Estado deve garantir a segurança de sua população. No entanto, muitos serviços de segurança privada funcionam como um substituto à segurança pública, principalmente para os segmentos da população que podem pagar por eles. O que se observar, no caso, é que, no Estado Democrático de Direito, o monopólio do uso da força no controle social emana dos cidadãos e, portanto, é imprescindível que haja legitimidade e eficácia dos aparelhos institucionais da ordem – forças policiais e sistema judiciário.



As formas de privatização do controle social, como por exemplo, monitoramento e vigilância de espaços residenciais e comerciais, e também em seus arredores, e contratação de organizações que oferecem a segurança de bens, que devem estar submetidas ao necessário controle do Estado, tanto no que concerne ao funcionamento quanto à fiscalização das empresas do setor.


Comunidade Segura.

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