sexta-feira, 13 de junho de 2008

Entrevista - Adèle Kirsten

O gosto amargo da reconciliação incompleta.


Desde 11 de maio, uma onda de violência xenófoba matou 50 pessoas e exilou cerca de 70 mil na África do Sul. Os ataques, que começaram em uma township (bairro onde viviam os negros durante o período de apartheid) de Johannesburgo, se espalharam por outras cidades do país. Segundo a Cruz Vermelha, a violência levou 36 mil pessoas a retornarem a Moçambique e cerca de 1.900 a Malawi.



“Essa crise foi causada por um processo incompleto de reconciliação”, afirma Adèle Kirsten, ativista à frente do Centro para o Estudo da Violência e da Reconciliação na África (CSVR). “As pessoas estão insatisfeitas com suas condições, elas não se sentem beneficiadas pela democracia.” Para Adèle, é necessário que a sociedade civil participe da avaliação do trabalho governamental.



Como o CSVR atua em relação à crise de violência xenófoba na África do Sul?



A crise em si está relacionada a uma questão de reconciliação. Para mim, parte do que acontece na África do Sul é sintoma de um processo incompleto de reconciliação, uma transição incompleta de um sistema repressivo para uma democracia constitucional. Uma das prováveis razões da crise é o fato de que muitos sul-africanos que vivem em áreas mais pobres não tiveram acesso aos benefícios prometidos pela democracia: não conseguiram empregos, não têm acesso à água encanada, à moradia...



Nosso trabalho consiste em coordenar trabalhos de assistência psicológica e humanitária. Ajudamos as pessoas a lidarem com o trauma e a entenderem o que aconteceu com elas, assim podem recuperar seu equilíbrio.



Com relação aos agressores, há alguma intervenção?



Há muitas organizações locais que ajudam a minimizar tensões e prevenir novos ataques. É importante trabalhar com as comunidades e oferecer às vítimas o que elas precisam. Não interessa quem são os perpetradores, mas trabalhar com a comunidade como um todo.



É um processo lento e cujos resultados são de longo prazo. As pessoas estão insatisfeitas com sua condição, são pessoas pobres, acreditam que os estrangeiros estão tomando seus empregos. Não existe prova nenhuma de que isso seja verdade, mas não podemos ignorar essa sensação.



Como é a relação entre o CSVR e o governo?



O CSVR é completamente independente, mas trabalhamos com o governo quando é apropriado e relevante. Nesta questão (violência xenófoba) nos comprometemos em trabalhar com eles, mas há dificuldades em fazê-lo: o governo levou duas semanas para dar uma resposta, estão em uma posição defensiva; as relações entre governo e agências da ONU e a sociedade civil está um pouco tensa agora.



Qual é o papel do CSVR na questão da violência na África do Sul?



Procuramos entender por que o crime é tão violento na África do Sul, como a sociedade relembra e entende seu passado e as violações aos direitos humanos, como as pessoas relatam e se encontram com suas histórias através das oficinas de memória. Olhamos para onde estão os vestígios das violações de direitos humanos, onde ocorreram desaparecimentos de crianças.



É possível simplesmente tomar um novo rumo, esquecer o passado?



Trabalhar com memória é trabalhar com accountability e com impunidade. Trabalhamos com outros países também, o Peru, por exemplo. Se não lidarmos com o passado e nos reconciliarmos com ele, se não entendermos o que aconteceu e por que, abrimos espaço para que um profundo ressentimento se instaure.



Isso significa reconhecer que as vítimas podem se tornar perpetradores. Tem a ver com interromper o ciclo de violência. Cria-se uma nova maneira de ajudar. Para mim, a explosão de xenofobia nas últimas semanas representa uma situação de tensão.



Então lidar com a violência passada não seria uma questão de esquecer nem de perdoar?



O conceito da Comissão de Paz e Reconciliação (parte do processo de transição do apartheid) passou mensagens com forte influência religiosa e moral, e a mensagem era de perdão – e teve seu valor na época -, mas os exemplos mostram que são processos separados.



Não existe uma fórmula exata, tipo “isso funciona, isso não.” Em Ruanda, por exemplo, o processo teve um foco mais local, eles tiveram uma ouvidoria local, onde as pessoas podiam participar, foi muito interessante. Existem exemplos similares na Guatemala e na Argentina. Aqui o processo foi muito mais formal.



Como foi a sua experiência na organização Gun Free South Africa (África do Sul Livre de Armas)?



O interessante é que nessa crise toda teve pouca violência armada. Nós (a África do Sul e o Brasil) ainda somos as nações com os mais altos índices de homicídios com arma de fogo. Mas o trabalho ainda não terminou e eu espero trabalhar mais com controle de armas.



"Deixe o medo do lado de fora" era o lema da campanha Zonas Livres de Armas. Mas como fazer isso?



Essas palavras estavam em um cartaz veiculado já no fim do processo que foi baseado em um contrato social. Nós realizamos oficinas para começar uma discussão sobre o significado de segurança, da segurança pública e do papel da comunidade. O processo começou com um diálogo e estabeleceu um relacionamento de confiança. Isso não quer dizer que as pessoas não estavam assustadas, mas, pelo menos, conheciam umas às outras.



Como a comunidade foi envolvida nesse tipo de trabalho?



Os encontros eram, na maioria das vezes, com pessoas leigas. A reunião inicial era somente com pessoas da comunidade e, eventualmente eles se sentiam à vontade para convidar outros grupos se achassem necessário. Se se sentissem inseguros, por exemplo, sobre pessoas de fora entrando nas suas comunidades livres de armas, poderiam chamar a polícia.



Qual seria o papel da sociedade civil na prevenção da violência?



É um papel crítico e deve ser realizado em parceria com diversas organizações, incluindo o governo.



E essa combinação é eficiente?



Nós ainda não alcançamos os resultados que deveríamos. Ainda não demos o passo atrás para ver se funciona. Precisamos realizar mais pesquisas e recolher dados sobre o que previne a violência. Eu uso com freqüência o exemplo do Luta pela Paz que trabalha com a resiliência e busca os fatores que ajudam os jovens a não entrar para o crime.



É hora de virar a questão ao contrário, falar do que é positivo. A sociedade civil deveria trabalhar mais na avaliação dos seus próprios processos e esse é um projeto de longo prazo. Nós tendemos a buscar soluções rápidas e isso é compreensível porque existem níveis altíssimos de violência em ambas as sociedades (brasileira e sul-africana).


Comunidade Segura.

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