quarta-feira, 25 de junho de 2008

Artigo:O freio não funciona

imprensa e o público se ocupam mais dos congestionamentos do que das mortes do trânsito em São Paulo. Sendo as coisas como são, faz sentido: ficar preso num engarrafamento acontece conosco, morrer atropelado ou numa colisão acontece com os outros; além disso, para muitos, atentar para a rotina da violência no tráfego talvez seja o equivalente a dar de cara com um espelho que revela o que não se quer enxergar - a contribuição pessoal para o abrutalhamento da vida urbana.

Poucos motoristas, vai sem dizer, são criminosos em potencial. Mas, até pela freqüência, as mortes nas ruas podem ser tudo, menos acidentais. Marcam o fim da linha de um comportamento anti-social que os gargalos exasperantes só fazem agravar. O ponto de partida está nas inumeráveis transgressões miúdas das regras do trânsito, que a maioria das pessoas decerto nem sabe identificar como tais, ou, quando identifica, dá de ombros: afinal, tem coisa muito pior que fica por isso mesmo. Só que, de tantos pecadilhos e tanta resignação, tolera-se o intolerável.

Por isso, vai ver, ecoou menos do que merecia a reportagem de Jones Rossi publicada na última quarta-feira no Estado. Trata de um levantamento da Secretaria Municipal de Saúde segundo o qual, no ano passado, as mortes no trânsito paulistano (1.843) praticamente empataram com os homicídios (1.928). Isso porque o total de assassinatos vem caindo acentuadamente - 71%, a contar de 2001 -, enquanto a outra causa de morte aumentou 10% no período. Se a tendência persistir, a possibilidade de perder a vida no trânsito será a maior.

À primeira vista, o resultado se explicaria pela expansão do número de veículos na cidade. A frota já está em 6 milhões, a segunda maior do mundo. Inclui meio milhão de motos. (Um motoqueiro morre a cada 27 horas.) Ora, quanto mais veículos rodando, menor a velocidade média, menor também, em teoria, o risco de desastres fatais. Mas, na prática, o travamento do trânsito não funciona como um freio às barbeiragens: para compensar o tempo perdido, mais motoristas, assim que possível, aceleram na contramão da prudência - e os outros que se danem.

Trânsito congestionado é um atraso de vida, seja lá onde for. Mas aqui tem o efeito perverso de impor a Lei de Gérson, a que manda levar vantagem em tudo. É de presumir que os avantajados sejam os primeiros, embora não os únicos, a imprecar contra qualquer tentativa de diminuir a massa de carros particulares em circulação, com a volta do rodízio o dia inteiro, entre outras providências. Sem o que - façam os engenheiros de tráfego os malabarismos que quiserem - a situação só irá piorar. Será interessante saber, a propósito, se algum candidato viável a prefeito terá a coragem de prometer medidas para manter mais carros por mais tempo nas garagens de São Paulo.

Parece desalentadoramente grande a parcela da população motorizada que não apenas abomina que se restrinja o que ela supõe ser o seu direito intocável ao uso do carro próprio quando bem entender, mas também acha que o resto são cidadãos de segunda classe. As políticas de trânsito concorrem para isso. Entre as mágicas em que se pensa para aumentar o fluxo do trânsito, por exemplo, está a de diminuir o tempo de travessia dos pedestres nos cruzamentos - já não bastasse a sua brevidade e serem proporcionalmente muito poucos, numa cidade com um veículo para cada dois habitantes, os semáforos exclusivos para pessoas. Sem falar na inexistência de faixas para ciclistas.

Experimente o desavisado pedestre ver o que o espera se imaginar que tem preferência, como em qualquer centro civilizado do mundo, para atravessar um cruzamento quando o sinal abre e os veículos com que está emparelhado podem virar na transversal. As conseqüências, de uma banalidade atroz, são uma amostra dos proverbiais pequenos assassinatos que os donos das ruas cometem com a maior naturalidade, às vezes não lhes passando pela cabeça que as coisas possam ou devam ser de outro modo.

Em setembro de 1997, quando se comentou neste espaço a entrada em vigor do Código de Trânsito Brasileiro, um leitor escreveu que, ora vejam o absurdo, estão querendo transformar o Brasil numa Suécia. (Queriam apenas transformar o Brasil num Brasil menos indecente.) Foi bom enquanto durou. A reportagem citada no início deste texto lembra que o código provocou uma queda drástica na mortandade do trânsito em São Paulo - de 1.907 vítimas no ano anterior para 1.202 no ano seguinte, estabilizando-se nessa faixa até 2004. Depois, a tendência desandou, com o abrandamento da norma e de sua aplicação.

A ver, aliás, no que dá a lei de tolerância zero assinada na quinta-feira pelo presidente Lula. Ela pune até com a perda da habilitação, dinheiro e cadeia o motorista flagrado dirigindo depois de beber. Segundo um estudo da Universidade de São Paulo, publicado em 2005, quase a metade (47%) dos envolvidos em desastres graves na cidade tinha álcool no sangue. O trabalho atesta a "grande tolerância social em relação ao ato de beber e dirigir". Mas, para uma de suas autoras, Júlia Maria D?Anfréa Greve, isso não explica o crescimento das mortes em São Paulo. "Os dados de consumo de álcool são mais ou menos estáveis", observa.

Civilização é o produto de educação com repressão - quanto maior a primeira, menos necessária a segunda. No Brasil, campanhas de educação para o trânsito se repetem décadas a fio, com resultados imperceptíveis (a não ser que se argumente que, sem elas, a selvageria seria ainda pior). As autoridades já não sabem o que fazer para incentivar os motoristas a respeitar a lei. No Rio de Janeiro, por exemplo, o Detran resolveu premiar os sem-multa com certificados de comportamento exemplar, na esperança de mudar a mentalidade dos infratores. Boa sorte: no ano passado, mais de 1,8 milhão de multas foram aplicadas na cidade, para uma frota 2 milhões de veículos.

Luiz Weis é jornalista

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