sábado, 21 de junho de 2008

Artigo: Usina de injustiças

A notícia de que o “pacote” contra a impunidade mereceu sinal verde foi recebida com reações variadas. Não é fácil a obtenção de consenso numa sociedade cada vez mais pluralista e, portanto, complexa. Os que louvam a iniciativa enxergam a possibilidade de simplificação no julgamento dos crimes dolosos contra a vida e, portanto, acreditam na redução do nível de impunidade.

Não há dúvida de que se avança nessa direção. Acabar com o protesto por novo júri, que obrigava ao reexame da decisão dos jurados a cada condenação superior a 20 anos, é saudável. Se o júri é soberano, por vontade do constituinte, por que desconfiar do julgamento dos cidadãos investidos de singularíssima jurisdição?

Só que a reforma ainda é tímida. Dir-se-á que o avanço precisa ser gradual e que toda mudança é traumática. Principalmente no universo anacrônico da ciência jurídica - imerso em ritualismos pré-medievais, impregnado da ficção da “segurança jurídica”. Como insistir nessa pretensão, quando a única certeza contemporânea é a incerteza? Não existe sequer a segurança de preservação da vida no planeta, a considerar o ritmo da devastação e da contaminação atmosférica. Nesse mundo da insegurança, faz sentido invocar a estabilidade do Direito?

Seja como for, para situações de crise os remédios precisam ser mais potentes. A questão dos delitos dolosos contra a vida reclama antibióticos, não analgésicos. Por que já não se eliminou a quesitação, fonte evidente de nulidades e atrasos, para que os jurados apenas respondessem “culpado” ou “inocente”? O julgamento pelo júri é mais ético do que jurídico. Não faz sentido submeter questões técnicas a leigos em Direito.

A sentença de pronúncia também precisaria ter sido eliminada. Bastaria a denúncia do Ministério Público. A idéia inicial era essa, mas a proposta não foi acolhida pelo Parlamento.

O momento é propício a reflexões mais abrangentes. Alguém já se preocupou em verificar quantos são os homicídios que deixam de ser apurados? Por que não se faz um levantamento de todas as mortes por autoria desconhecida, os “encontros de cadáver” que podem comprometer as estatísticas, e se estabelece uma relação entre o número de assassinatos e o de réus submetidos a julgamento?

Por que não se apurar qual o número de mandados de prisão expedidos contra homicidas e ainda não cumpridos? Em seguida, verificar quantos inquéritos policiais foram instaurados para apuração de mortes consideradas suspeitas e a porcentagem de ações penais deles resultantes? Ao final, seria interessante estabelecer uma correlação entre o índice de homicídios e o de julgamentos pelo tribunal popular.

O problema é muito mais sério do que se imputar ao Tribunal do Júri uma apreciação distanciada do ideal de justiça. Não é que o jurado popular não saiba julgar. A questão é a insuficiência do equipamento estatal para submeter a júri todos os autores de crime de morte.

Não há teatro judicial mais sofisticado, ritualístico e dispendioso do que o Tribunal do Júri. Os juízes, meros condutores desse rito, precisam se esmerar em cautela e atenção para não serem colhidos pela miríade de nulidades postas em seu caminho. Se alguém se propuser a fazer uma pesquisa séria, poderá constatar quantos são os casos em que a sentença de pronúncia é objeto de recurso, quantas as anulações de julgamento por quesitação considerada irregular, qual o tempo de duração de um processo do júri, cotejado com o de uma ação criminal de competência do juiz singular.

O resultado do ritualismo é que, no Brasil, não há valor tão subestimado como o da vida humana. Paradoxal que se prestigie mais a vida animal do que a vida do semelhante. Matar um animal ameaçado de extinção é crime inafiançável. Surpreendido, o agente é imediatamente preso. Matar uma pessoa, nem sempre. Salvo as hipóteses de flagrante, a apresentação posterior e uma boa defesa técnica garantirão a permanência do infrator em liberdade.

Outro objeto interessante de pesquisa será verificar qual o número de prescrições em delitos perpetrados contra a vida. A prescrição criminal é a ação do tempo a neutralizar a possibilidade de o Estado vir a punir o autor do delito. Uma das garantias do Estado de Direito é a de que a ação penal pública incondicionada será exercida num certo espaço de tempo. Se a máquina estatal não for eficiente nesse período, perde-se a oportunidade de julgar o crime. O tempo, que tudo cura, atua no sentido de deletar a vulneração a um bem da vida acolhido na lei penal. Nenhuma conotação com o qualificativo deletério nessa figura jurídica.

Não será surpresa se a conclusão desses levantamentos vier a comprovar que um dos crimes em que existe maior possibilidade de se restar impune é o dos chamados “dolosos contra a vida”. Ou seja, a vontade firme e deliberada de tirar do próximo o valor maior, o pressuposto à fruição de todos os outros bens, por isso que chamados “bens da vida”, é a modalidade delitiva menos sujeita a punição.

Ou se é alguém diferenciado, que chame a atenção da mídia, ou se pratica um crime nefando, daqueles em que a comunidade se impregna de um furor justiceiro e quer ver logo outro sangue derramado, para merecer julgamento pronto pelo tribunal dos cidadãos. Os homicídios anônimos, que envolvem pessoas comuns, sobre as quais não recai o foco atrativo da curiosidade desperta pela fogueira das vaidades, têm considerável possibilidade de nunca serem julgados.

Essas e muitas outras cogitações devem merecer a atenção dos pesquisadores e estudiosos e daqueles que acreditam que deva permanecer no ordenamento essa forma democrática de se julgar quem matou.

Por José Renato Nalini, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, é presidente da Academia Paulista de Letras.


Estadão, 18/06/2008.

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