sábado, 28 de junho de 2008

Artigo: Pulseirinhas, tornozeleiras e inconstitucionalidade da lei nº 12.906/08

Em abril de 2008, o Estado de São Paulo brindou o Brasil com a Lei nº 12.906, que disciplina o uso de tecnologia no controle do cumprimento de restrição de caráter penal e processual penal. Em resumo, de acordo com os critérios estabelecidos na norma, seria possível fiscalização de cumprimento de condições impostas por decisão judicial a condenado ou a preso cautelar, pelo controle remoto de sua localização, desde que o cidadão ao monitoramento aquiescesse. Tal vigilância dar-se-ia por meio da afixação de pulseiras ou de tornozeleiras eletrônicas, muitas vezes menores que um celular — o maior modelo testado é uma caixinha de 8cm de altura, por 4cm de largura e 4 de espessura; o menor tem 2cm de espessura, 4cm de altura e 2cm de largura — que, contendo microchip, transmitiria sinais de rádio a central(is) de verificação mantida(s) pelo Estado.

Levantaram-se, logo, aplausos e vaias. Alguns afirmaram que a medida incrementaria a utilização pelo Judiciário de recursos diversos do encarceramento, uma vez que passariam os juízes a fiar mais no cumprimento das restrições por eles impostas, com reflexo importante no número de enclausurados; outros gritaram contra o ferimento à dignidade dos monitorados, já que o uso das pulseiras/tornozeleiras seria estigmatizante (chegaram até a lembrar das estrelas amarelas costuradas às roupas dos judeus na Alemanha nazista!). Dentre estes e aqueles, houve quem levantasse também a inconstitucionalidade da medida, por extrapolar a matéria regulada a atribuição legislativa estadual. Passemos, então, por cada umas dessas teses, para, no meio, levantar ponto que parece ser relevante para o debate.

Salvo melhor juízo, a afirmação de que a maior possibilidade de fiscalização seria indutora da adoção de decisões judiciais que impusessem restrições, impedindo a “remessa” do cidadão diretamente ao cárcere, data venia, carece de precisão. Nada, absolutamente nada, garante que os juízes passarão a adotar medida diversa da determinação de prisão, só porque se fiscaliza mais o cumprimento das condições impostas para a concessão de liberdade provisória, por exemplo.

Tal idéia, embora sedutora, não resiste a análise mais apurada, já que amparada apenas em “achismo”: imagina-se que o juiz escolhe a prisão, como “reação antecipada” ao descumprimento de condições cujo descumprimento considera certo, por ausência de fiscalização das autoridades administrativas; com maior controle, quebrar-se-ia o ciclo viciado, o que levaria os magistrados a escolher medidas diversas do encarceramento.

Não conheço pesquisa que afirme ser essa “quase insegurança” judicial a razão íntima de decidir dos magistrados e acho perigoso que se a tente adivinhar, embora tenha a sensação de que a imposição de prisão dá-se muito mais por opção ideológica dos juízes, que se enxergam como instrumento do aparelho repressivo do Estado, nunca como instrumento de defesa de garantias individuais; esta carapuça algo policialesca leva, quase que automaticamente, à determinação de encarceramento daqueles que enfrentam “as misérias do processo penal”. Se esta hipótese estiver correta, como pode estar, os adereços tecnológicos seriam inócuos à diminuição das expedições de mandado de prisão.

Fato é que presunções, sensações e “achismos”, como o ora sob comento, não devem amparar crítica jurídica, sob pena de, amanhã, por coerência, ter-se de admitir igual operação em hipótese que não convenha ao argüente.

Afastado o argumento de que a fiscalização remota diminuiria o número de presos, atente-se que a Constituição Federal não autoriza que ninguém permaneça preso, senão depois dalguma manifestação judicial breve (mesmo o preso em flagrante tem direito à verificação célere da legalidade da prisão imposta por autoridade policial); o encarcerado tem, sempre, de direito e de fato, sua liberdade coartada e a intimidade restringida a mais não poder; será que a violação remota à intimidade do cidadão, pelo controle autorizado e à distância, é mais vulnerante que as restrições impostas pelas masmorras?

Falo, agora, por mim, para não cair na antes criticada armadilha das presunções. Entre manter eventual “liberdade” de transitar intramuros prisionais, sem usar a pulseira, ou ter de me ver com adorno do tamanho dum aparelho celular no pulso ou perto de meu pé, autorizado a andar pelas ruas, sabendo-me vigiado e podendo responder por eventual desrespeito a limites impostos por decisão judicial, não me aparece dúvida: antes solto, com o penduricalho a me “enfeitar”, que preso, com o “direito” a andar pelo estabelecimento carcerário sem ser identificado, se é que isso na prática se verifica...

Dando forma de argumento jurídico a essa opinião, penso que, no balanço entre os danos à dignidade e à intimidade causados pelo encarceramento e a liberdade adornada por pulseiras ou tornozeleiras, com algum constrangimento pelo uso voluntário do dispositivo, não sobra maltrato à Constituição na adoção dos penduricalhos eletrônicos.

De outra sorte, parece-me evidentemente exagerada a equiparação do eventual uso das pulseirinhas e/ou tornozeleiras, às estrelas amarelas, na Alemanha nazista, utilizadas para indicar que o portador da insígnia infamante era judeu. Em terras paulistas, os portadores das geringonças seriam aqueles que se vêem sujeitos ao processo penal, com todas as garantias constitucionais a ele inerentes, tudo condicionado à aquiescência do indigitado, conforme se vê no art. 2º da referida lei estadual. Ademais, a qualquer momento, maior e capaz que é, optando pelo retorno às grades, o adornado poderá retratar-se, nos termos do § 1º do referido dispositivo, deixando de utilizar os incômodos braceletes.

Ora, é de mau gosto a lembrança da medida nazista, para argumentar contra a norma paulista, já que, em bandas teutônicas, tratava-se de medida compulsória e estigmatizante, imposta a pessoas em razão de sua “raça”, sem a observância do devido processo legal e das garantias a ele inerentes; aqui, fala-se de determinação judicial, colhida manifestação de vontade do principal interessado, que, ponderando ser muito mais degradante permanecer na masmorra a ser eventualmente identificado nas ruas como alguém que cumpre restrição judicial, faz opção por maior liberdade. Com o devido respeito àqueles que defendem a inconstitucionalidade, ab ovo, da idéia do monitoramento à distância por ser estigmatizante, parece melhor evitar o sofisma.

Mas a lei bandeirante é inconstitucional. É certo que a Constituição Federal estabelece atribuição legislativa concorrente à União, aos Estados e ao Distrito Federal, em matéria de direito penitenciário (art. 24, nº I), competindo exclusivamente à União a atribuição legislativa em matéria penal e processual (art. 22, inc. I).

A Lei Estadual nº 12.906 foi, permita-se o adjetivo, traiçoeira, ao firmar, logo em seu art. 1º, que “regula a utilização da vigilância eletrônica para a fiscalização do cumprimento de condições fixadas em decisão judicial”, como se já houvesse a previsão, em lei federal, da “utilização da vigilância eletrônica para a fiscalização do cumprimento de condições fixadas em decisão judicial”. Norma federal desta estirpe, contudo, não existe.

Não trata a lei bandeirante, portanto, de regulamentação de instituto previsto em norma proveniente de Brasília, mas sim de criação de sistema novo, inédito, de fiscalização eletrônica, que impõe deveres — como o de receber visitas do servidor responsável pela vigilância eletrônica, de responder aos seus contatos e a cumprir suas orientações etc. (cf. incisos do art. 6º) —, cujos desatendimentos constituirão “falta grave”, acarretando “a revogação do livramento condicional, da saída temporária ou da prestação de trabalho externo” e/ou “o recolhimento em estabelecimento penal comum” (cf. seu art. 7º).

Todos estes são efeitos próprios de normas de Direito Processual e/ou Penal, que constituem matérias vedadas à disciplina de lei local, conforme, aliás, já firmou o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC 87.788-SP (5ª Turma, rel. min. Laurita Vaz), em que se assentou a inconstitucionalidade de imposição de falta grave, com fundamento em lei estadual, por porte de celular em estabelecimento prisional.

Mister preservar a lealdade intelectual e reconhecer que, no que se refere à utilização de dispositivo eletrônico para o controle de condições impostas a condenados e/ou a presos provisórios, legislou o Estado de São Paulo sobre matéria de exclusiva atribuição da União; por isso, a Lei Estadual nº 12.906/2008 é inconstitucional, o que não impede a disciplina por lei federal do uso de tecnologia na verificação de cumprimento de condições impostas a presos provisórios ou condenados.

Por Roberto Soares Garcia, Advogado criminal.


Boletim IBCCRIM nº 187 - Junho / 2008

Um comentário:

joao grejo disse...

è totalmente ilegal e fere o artigo 112 da Lei de execução Penal, pois esta diz que o preso "nao tera vigilancia direta"...

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