segunda-feira, 23 de junho de 2008

Artigo: O direito fundamental à educação infantil

Defronta-se, diariamente, com a violação de direitos fundamentais dos cidadãos, retrato do aviltamento à dignidade humana - prostituição infanto-juvenil, crianças esmolando, trabalhando precocemente, perambulando, subnutridas, exploração de todas as ordens. Com facilidade, percebe-se que a causa desse estado de fatos, que os faz originarem e que assim os mantêm, deve-se, em muito, à omissão do Estado quanto às políticas públicas que conduzam à concretização dos direitos fundamentais.

A ausência de estratégias públicas - até há pouco menosprezadas pelos operadores do direito - assumiu seu verdadeiro status de grande responsável pelo desencadeamento da violência social e da opressão. A promoção do direito social fundamental à educação exerce papel determinante nas estratégias política e jurídica de prevenção social os recursos tempestiva e adequadamente aplicados, hão de evitar a injustiça social que, inevitavelmente, produz marginalização, violência e exclusão.

Em face de seu caráter emancipatório, a educação, ao lado da saúde, é pontuada por Amartya Sen, o Prêmio Nobel da Economia de 1998, como fator de promoção da dignidade. Em seu arrazoado,

a expansão dos serviços de saúde, educação, seguridade social, etc. contribui diretamente para a qualidade da vida e seu florescimento. Há evidências até de que, mesmo com renda relativamente baixa, um país que garante serviços de saúde e educação a todos pode efetivamente obter resultados notáveis de duração e qualidade de vida de toda a população(1).

Em particular, no que se refere à educação infantil, esta entendida como aquela ministrada a crianças de 0 (zero) a 6 (seis) anos de idade, somam-se os argumentos da comunidade científica - de âmbito multidisciplinar - que investiga o processo de desenvolvimento da criança. Assegura-se que a inteligência se forma a partir do nascimento e menciona-se o que chamam de “janelas de oportunidade” na infância, o que ocorre quando determinado estímulo ou experiência exerce maior influência sobre a inteligência do que em qualquer outra época da vida. Assim sendo, descuidar-se desse período - a infância - significa desperdiçar um imenso potencial humano. Mais que isto, significa comprometer os alicerces individuais e, por conseguinte, as bases do convívio social(2).

Nesta especial fase de desenvolvimento, a prioridade absoluta dessa clientela justifica-se na medida em que, superado o momento adequado, os investimentos posteriores não produzirão os mesmos resultados que poderiam ser obtidos naqueles períodos cruciais à estimulação.

É preciso, pois, democratizar essa oportunidade, denominada de educação infantil, para que todas as crianças possam gozar plenamente seus direitos em igualdade efetiva de condições. Os argumentos - sejam legais, sociais ou científicos - implicam em uma educação infantil universalizada. Vale dizer, dirigida às crianças de todas as classes sociais e em qualquer situação de peculiaridade pessoal e ministrada com satisfatório grau de especialidade.

Embora, no Brasil, a educação de crianças menores de 7 (sete) anos conte com uma história de cento e cinqüenta anos, seu avanço mais significativo ocorreu a partir da década de 70. Entretanto, a educação infantil somente passou a ser concebida como educação, propriamente, com o advento da Nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1996 Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996.

Até então, a primeira fase da educação infantil, aquela destinada a crianças entre 0 (zero) e 3 (três) anos de idade, era ministrada em creches, estabelecimentos com perfil nitidamente assistencialista, cuja preocupação precípua repousava nos cuidados físicos, saúde e alimentação, descurando-se da vertente educacional. Era, assim, suprida, em grande parte, por entidades de filantropia e assistencialismo social, ignorando-se a consciência do direito.

Contudo, os percalços ainda estão fortemente instalados na realidade nacional. Segundo consta do documento Educação: Manifesto dos Senadores, na educação infantil, para um universo de 22 milhões de crianças entre zero e seis anos, acolhem-se nas creches, no segmento de zero a três anos, apenas 1.126.814 crianças e no segmento de quatro a seis anos, somente 5.160.787 alunos.

Os índices desfavoráveis não param por aí. Tomando-se como referência as metas do PNE - Plano Nacional de Educação, chega-se ao número de mais de 800.000 docentes que ainda devem fazer o ensino superior(3).

A realidade está a merecer, com a urgência que o tema requer, um posicionamento do direito sobre a questão. A omissão, pelo Poder Público, no estabelecimento e implementação das políticas públicas, em detrimento da efetivação dos direitos sociais, em desobediência à Constituição da República não pode ser justificada, equivocadamente, como uma questão de discricionariedade administrativa, frente à escassez de recursos. Não se está no campo da opção e sim no da vinculação, a qual decorre do princípio constitucional, dentre outros, da prioridade absoluta.

Na gestão de seus poderes-deveres, o Administrador Público atuará de forma vinculada e/ou discricionária. Porém, não é a ele Administrador Público, a quem cabe estabelecer o que é um e o que é outro. E, ainda que se ingresse no terreno da discricionariedade administrativa, a extensão desta é estabelecida por lei, fonte de toda normatividade, regramento e delimitação da discricionariedade.

Os direitos fundamentais, erigidos constitucionalmente a este patamar, impõem ao administrador público o dever de promovê-los, dando-lhes efetividade. As políticas públicas constituem-se, nesse contexto, no instrumento para a efetivação destes direitos.

As políticas públicas materializam a estratégia do administrador público para se obter a concretização dos direitos. No âmbito de sua implementação, buscará o administrador, dentro das balizas apresentadas pelo ordenamento jurídico, mecanismos de priorização, considerando a realidade inexorável da magnitude dos direitos e a disponibilidade finita de recursos.

Se o estabelecimento de prioridades privilegiando-se recursos para certos segmentos, em detrimento de outros, menos prioritários é uma constante nas políticas públicas em geral, o mesmo não deve ocorrer no espaço da educação infantil. Nesse segmento, poucas são as opções a serem feitas, haja vista que a criança - e tudo mais que se revela indispensável para sua formação -, recebeu tratamento constitucional prioritário. A opção, vale dizer, já foi feita pelo constituinte.

Nessa acepção, a discricionariedade ganha conotação de dever, e não de poder. Sendo assim, deve o Administrador Público, no exercício de sua função discricionária, perseguir uma série de finalidades normativamente ordenadas e, obrigatoriamente, alcançá-las.

Notas:

(1) SEN, 2000, p. 170 et.0 seq.

(2) Disponível em: http:/folio.mp.pr.gov.br. Acesso em: 19.jul. 2006.

(3) O salário médio dos professores da educação básica, em seus vários níveis, varia de R$ 430,00 (quatrocentos e trinta reais) na educação infantil, a R$ 700,00 (setecentos reais) no ensino médio. Sequer ultrapassa, portanto, o patamar de dois salários mínimos nacionais.


Por Hirmínia Dorigan de Matos Diniz é mestre em Direito Econômico e Social pela PUCPR e promotora de justiça com atribuições junto ao Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Proteção à Educação do Ministério Público do Estado do Paraná.


O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 22/06/2008.

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