segunda-feira, 2 de junho de 2008

Artigo: O bom humor na vida forense morreu de inanição




A vida forense sempre foi plena de casos (ou causos) engraçados, pitorescos, armadilhas que a vida prepara. Não havia um advogado experiente que não tivesse uma série deles para contar. Um dos mais populares, que era tido como verdade (o nome da comarca variava conforme o contador), era o do oficial de Justiça que, ao lavrar um auto de penhora, solenemente, colocou: “e na falta de outros bens, penhorei um crucifixo de madeira, de cor escura, marca I.N.R.I.”.

Essas histórias forenses foram sumindo aos poucos. Discretamente. Não houve data marcada para o falecimento. A morte foi de velhice, de inanição. Pouco procuradas, esquecidas, foram se recolhendo em pequenos cantos. Sobrevivendo, em estado decadente, em comarcas distantes deste país imenso. Sem que sua debilidade fosse notada. E a vida dos profissionais do Direito foi ficando menos rica. Sem sabor.

Não há qualquer previsão de renascimento. Nem mesmo sob a forma de reencarnação. A vida moderna não permite. Todos têm muitos afazeres. O tráfego de veículos estimula a irritação. A disputa pelo mercado de trabalho tornou-se árdua para os jovens advogados. São obrigados a fazer pós-graduação, conhecer informática e inglês. E na hora dos honorários, o contrato é de risco, só recebem se ganharem a causa. Os funcionários da Justiça estão sempre assoberbados de trabalho e, pelo nível cultural que hoje apresentam, deixaram de ser os tipos folclóricos do passado. Juízes vêem os processos chegar em pilhas e, impacientes, trancam-se nos gabinetes. E por aí vão as múltiplas causas do fim do bom humor.

Mas, se a ressurreição é impossível, que pelo menos se preserve o bom trato. Este parece que também anda debilitado. Juízes que não cumprimentam os funcionários do cartório ou não olham para o advogado. Promotores que se consideram os detentores únicos das virtudes da humanidade. Advogados que vão para a audiência vendo no colega que defende a parte contrária um inimigo. Policiais que vêem nos que os procuram os destinatários de suas insatisfações com os baixos vencimentos. Escrivães que adoram criar problemas aos advogados, fazendo mil exigências inúteis (por exemplo, para que um estagiário possa retirar os autos de cartório).

O mundo do Direito, por si só, é difícil. Ninguém procura os tribunais para divertir-se. Conflitos envolvendo a liberdade, patrimônio, guarda de filhos, geram tensão, insatisfação. Nos tribunais de segunda instância, a desarmonia pode espalhar-se até por simples posições contrárias, a respeito de algum tema jurídico. Nesta arena profissional, pesada por sua própria natureza, as regras de convivência tornaram-se essenciais para que se ponham limites nas desavenças. Não é por acaso que se criaram tratamentos formais e o data vênia precede uma opinião divergente. É para não agravar o que já é grave.

Se nem isto sobrar, se a cada interesse contrariado resultar uma representação à Corregedoria, se os atores não compreenderem que cada um tem o seu papel nessa engrenagem complicada e que devem facilitar aos outros o cumprimento do seu, as coisas se tornarão muito ruins. Ir para uma audiência - em qualquer condição - será um martírio. Fazer uma sustentação oral, idem. Participar de uma tentativa de conciliação, um pesadelo.

Se as empresas preparam seus funcionários para situações de conflito (por exemplo, as comissárias de bordo nos aviões), não está na hora das instituições prepararem seus profissionais para este novo mundo? Para dar só um exemplo, os servidores que atendem o público nos cartórios não deveriam ter formação especial?

Para que a vida não perca seu encanto, parodiando a máxima bíblica (atire a primeira pedra quem ...), vale perguntar: quem, segunda-feira, ao participar de uma atividade forense, dará o primeiro sorriso? Ou um cordial boa tarde?

Vladimir Passos de Freitas é desembargador aposentado do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região e professor de Direito Ambiental da PUC/PR. (Publicado na Revista Consultor Jurídico)


O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 01/06/2008.

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