domingo, 15 de junho de 2008

Artigo: Muito barulho por nada(1): o hediondo e suas repercussões

É verdade que alguns crimes nos são apresentados pela mídia de forma sensacionalista. É verdade que a mídia - sobretudo através do discurso daqueles que são valorizados em razão da sua função e reputação “intelectual” - influencia nossa vida e nossas conclusões pessoais e profissionais. É evidente que os crimes ocorridos em classes sociais mais favorecidas chocam e repercutem muito mais em uma sociedade que tende a associar a desgraça à pobreza. Isso não é novidade, mas, cada vez que acontece, agimos como se fosse a primeira. Compramos as notícias, nos horrorizamos, alguns saem pichando muros pedindo justiça e chorando a morte de uma pessoa desconhecida. Porém, de pouco adianta pensar nos sintomas contemporâneos e relacioná-los pura e simplesmente com a ação da mídia. Também não parece assertivo dizer que esses crimes hediondos são mais freqüentes nos dias de hoje ou em tais e tais fatias da população. É razoável que, antes de buscar o óbvio da causalidade matemática - sistema punitivo falido = violência ou especulação na mídia = prejuízo de valores morais - façamos uma reflexão mais profunda e menos preconceituosa sobre o assunto.

Vejamos: Os crimes mais chocantes (e mais divulgados) são aqueles que dizem respeito à família. Sentimos horror diante desses casos porque a família sustenta a nossa sociedade. Assim, quando uma pessoa não é capaz de respeitar as regras de convivência familiar, matando os pais ou seus filhos, vemos uma natureza animalesca escancarada diante de nós, que insistimos em renegar e ignorar com repulsa - negação que é, aliás, quesito fundamental para que possamos viver em coletividade e para que a civilização sobreviva.

Sabemos que a Justiça pouco tem a fazer e é preciso concordar com o professor Haroldo César Náter(2) quanto à especificidade da questão, quanto à necessidade de nos afastarmos de juízos de valor para pensar em uma efetiva mudança, seja ela da ordem que for... A questão que permanece é a ilusão e a esperança de que haveria um sistema de Justiça que, coagindo o cidadão (qualquer um, todos eles) com a sua eficiência e irredutibilidade, diminuísse o número de histórias hediondas, o índice de violência, a brutalidade humana escancarada. Como se a severidade das leis penais fossem, em si mesmas, suficientes para acabar com os casos de infanticídio, de incesto, de parricídio... Nessas horas, parecemos esquecer-nos de que há algo de inapreensível e de imprevisível na conduta humana, de que construímos maneiras de evitar que as normas sejam desrespeitadas e de que esses instrumentos não são infalíveis. Mais ainda, tendemos a observar essas normas como algo natural, esquecendo que um crime só pode existir a partir do momento em que alguém seja capaz de cometê-lo. O hediondo é, neste sentido, mais natural que o lícito. Então, por que tanto barulho?

Não se trata aqui de uma apologia à agressividade, nem tampouco de uma tentativa de justificativa ou, ainda, de fechar a questão dizendo que nossos instrumentos - jurídicos, psicológicos, etc. - são e sempre serão completamente inúteis diante dos acontecimentos. Trata-se tão somente de um convite a pensar essas questões de outra perspectiva. Muitos pensadores se interessaram pela natureza da agressividade no homem e a história da humanidade está marcada por tentativas de explicar o “Mal”. Quando Freud escreve o Mal-estar na Civilização em 1929 - período entre guerras - apresenta ao leitor dois grandes temas: os efeitos do antagonismo entre as exigências do instinto e as restrições da civilização, e a existência de um instinto humano de destruição. Neste texto, ele demarca a passagem do homem civilizado na estruturação de regras de convivência social: o homem passa a controlar seus impulsos a partir do momento em que se vê obrigado a associar-se a outros para se proteger e garantir a sua sobrevivência. Neste processo ocorre uma inevitável permuta da satisfação dos impulsos pela conveniência e proteção na convivência. Esta troca é marcada pela linguagem e símbolos compartilhados que vão nomear as coisas e possibilitar o deslocamento dos impulsos para objetivos comuns dentro de uma determinada organização que chamaremos “cultura”.

Freud percorre seus estudos falando do psiquismo humano em relação a duas tendências aparentemente opostas: Eros e Tânatos. Ele próprio admite ter sido muito mais fácil reconhecer a primeira, que abarca o que consideramos de mais “humano”: a preservação, a união e o amor. A segunda, que ele passa a chamar de “pulsão de morte”, foi mais dificilmente identificada por diversas razões, das quais apenas uma cabe aqui discutir. Fazendo referência a um poema de Goethe, ele comenta: “Recordo minha própria atitude defensiva quando a idéia de um instinto de destruição surgiu pela primeira vez (...). Que outros tenham demonstrado, e ainda demonstrem, a mesma atitude de rejeição surpreende-me menos, pois “as criancinhas não gostam” quando se fala na inata inclinação humana para a “ruindade”, a agressividade e a destrutividade, e também para a crueldade”(3). As criancinhas não gostam de saber disso, porque se reconhecem vulneráveis e desprotegidas, assim como nós tendemos a nos sentir diante de alguns acontecimentos, passando a implorar a figura de um sistema - já que não temos mais idade para reclamar isso a nossos pais - de uma Lei que nos proteja contra esta realidade cruel. No poema de Goethe, que separa a parte bonita da história e agradável de ouvir daquela que causa terror, nos deparamos com nossa eterna condição de impotência e fraqueza na luta pela vida, sempre em dependência de alguma garantia externa. Daí o barulho.

Não suportamos o hediondo e a repercussão estrondosa na mídia é a maior evidência desse desgosto, denunciando um desamparo coletivo perante aquilo que fere as regras mais fundamentais e nos coloca de frente com a inegável existência da crueldade e, conseqüentemente, da vulnerabilidade. Este sentimento de horror não cessará, mesmo que consideremos a inclinação para o “mal”. Nunca será agradável receber estas notícias, e sempre causará a reação - mas neste caso em massa - que tem aquela criancinha do poema de Goethe. Ingenuamente, pedimos à Justiça que faça desaparecer este sentimento de horror, alguns têm clamado inclusive que isso seja feito pelas vias mais cruéis possíveis. Como visto ultimamente, em debates fundamentados por estudiosos do Direito, não cabe à Justiça tamponar este sentimento, mas simplesmente proceder como lhe é esperado e previsto em seus fundamentos.

Uma segunda reflexão se indica como curiosa e, talvez, mais útil que a tentativa de explicação e consolo. Trata-se de pensar sobre outro efeito que a ênfase midiática produziu em explorar os crimes (hediondos) mais recentes. Este outro efeito até agora só foi comentado através de piadas que circulam sugerindo que, depois do assassinato de Isabella e da notícia de incesto na Áustria, a Dengue misteriosamente acabou, assim como as investigações das fraudes políticas e mais especialmente dos cartões corporativos. É compreensível que o impacto da notícia corresponda ao tipo de crime anunciado. Sabemos e compreendemos que o infanticídio e o incesto abalam as pessoas em outro “lugar”, como diria Jaques Lacan. Mas, no sentido comum da palavra “hediondo”, podemos pensar em todos esses acontecimentos com horror e mais ainda naqueles que são sempre esquecidos. Porque nesses casos sim - nesses que desaparecem dos jornais misteriosamente - uma mudança no sistema e uma revolta legítima poderiam resultar em um benefício comum à Nação. Nesses casos sim, é possível pensar em exigir transformações e medidas efetivamente capazes de controle e justiça.

Notas:

(1) Referência à comédia escrita por Shakespeare que satiriza a atitude de pessoas que se põem a falar, pois só lhes resta falar, diante da insensatez das relações humanas.

(2) NÁTER, Haroldo César. O processo de criminalização pela mídia breves comentários. Direito e Justiça, O Estado do Paraná. Curitiba, 4 mai. 2008..

(3) FREUD, S. O mal-estar na civilização. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Vol. XXI Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 124.


Por Daphne de Castro Fayad é graduada em Psicologia (2003) e especialização em Psicanálise e Filosofia (2005), ambas pela UFPR. Mestrado em Psychanalyse: Concepts et Clinique - Université de Paris VIII (2006). Professora na Universidade Positivo, curso de Direito.


O Estado do Paraná, Direito e Justiça.

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