sexta-feira, 27 de junho de 2008

Artigo: Medida provisória nº 417/08 e atipicidade do porte ilegal de armas da lei nº 10.826/03

Com a promulgação da Medida Provisória nº 417 em 31 de janeiro deste ano, o ordenamento jurídico se viu mais uma vez inovado no que tange aos prazos de registro e entrega dos armamentos existentes na Lei nº 10.826/03.

Frise-se que desde a publicação da Lei nº 10.826/03, os prazos do art. 30 (registro de armas) e art. 32 (entrega dos artefatos de uso permitido ou não às autoridades competentes) do diploma têm sido constantemente dilatados por sucessivas medidas provisórias e leis. Assim que o texto original da Lei nº 10.826/03 previa um prazo de 180 dias a partir de sua publicação (23/12/2003) para efetivação das medidas. Ocorre que a Medida Provisória nº 229, de 17/12/2004, estabeleceu que os prazos do art. 30 e 32 da Lei de Armas ficariam prorrogados até 23 de junho de 2005. Mais uma vez uma nova Medida Provisória, nº 253 (convertida na Lei nº 11.191/05) dilatou tais prazos até 23 de outubro de 2005 e assim fomos até que a atual Medida Provisória nº 417 estabeleceu um novo prazo de registro no art. 30 e retirou totalmente o prazo do art 32 da Lei de Armas.

A Medida Provisória n. 417/08 alterou a dicção do art. 30 da Lei 10.826/03, assim constando: “Os possuidores e proprietários de armas de fogo de fabricação nacional, de uso permitido e não registradas, deverão solicitar o seu registro até o dia 31 de dezembro de 2008 (...).”

Deste modo, durante o período que vai da publicação da Medida Provisória (31/01/2008) até o limite estabelecido pela nova dicção do art. 30 da Lei de Armas (31/12/2008), o indivíduo que for flagrado em sua residência ou local de trabalho com arma não registrada (mas registrável) não terá praticado o crime do art. 12 da Lei nº 10.826/03. Igualmente, não haverá incidência típica durante o novo prazo estabelecido pelo art. 30 da Lei de Armas, na conduta da pessoa que for encontrada realizando qualquer um dos núcleos verbais do art. 14 da Lei de Armas.

A Medida Provisória nº 417/08, igualmente, alterou a dicção do art. 32 da Lei nº 10.826/03, assim constando: “Art. 32 – Os possuidores e proprietários de armas de fogo poderão entregá-las, espontaneamente, mediante recibo, e presumindo-se de boa-fé, poderão ser indenizados. Parágrafo único: o procedimento de entrega de arma de fogo de que trata o caput será definido em regulamento.”

Por sua vez, a Exposição de Motivos da MP 417, no seu item 4, assim dispõe: “A urgência da medida também se manifesta por meio da alteração que se pretende ao art. 32 do Estatuto do Desarmamento, que a partir da edição desta medida provisória não mais definirá um prazo final de entrega, mediante indenização, das armas não registradas.”

Conforme salientado por Delmanto em Leis Penais Especiais Comentadas, Ed. Renovar, p. 651, ainda sobre a antiga dicção do art. 32 da Lei do Desarmamento que estabelecia prazo para a entrega das armas às autoridades: “Em face do acima exposto, o sujeito que até 23 de outubro de 2005, fosse apanhado em sua residência na posse ilegal de arma de fogo (de uso proibido, permitido ou restrito) não teria praticado os crimes do art. 14 e 16 da Lei 10.826/03, porque até o término do prazo poderia registrá-la ou entregá-la na Polícia Federal.”

A nova dicção da lei aboliu o prazo fatal, mas mantém o raciocínio de permitir a entrega do artefato à Polícia Federal sem que exista punição ao agente. Logo, não há como puni-lo pela conduta de porte ilegal de arma de uso permitido ou não, eis que a inovação da legislação atual permite a entrega da mesma sem punições ou perguntas — ao contrário, indenizando o agente.

Quando ainda na dicção anterior do art. 32 (com estabelecimento de prazo máximo para a entrega), o Supremo Tribunal Federal acolheu a tese da atipicidade temporária quando o fato fora praticado em data posterior à da publicação da lei, mas quando ainda dentro do limite para a regularização ou entrega do artefato de fogo.

Tal foi a decisão trazida a baila no Informativo nº 494 do STF de 20 de fevereiro de 2008, no HC 90.995/SP.

“Lei 10.826/2003: Atipicidade Temporária e Posse de Arma de Fogo.

A Turma indeferiu habeas corpus em que se pretendia o reconhecimento da extinção da punibilidade com fundamento na superveniência de norma penal descriminalizante. No caso, o paciente fora condenado pela prática do crime de posse ilegal de arma de fogo de uso restrito (Lei 9.437/97, art. 10, § 2º), em decorrência do fato de a polícia, em cumprimento a mandado de busca e apreensão, haver encontrado uma pistola em sua residência. A impetração sustentava que durante a vacatio legis do Estatuto do Desarmamento, que revogou a citada Lei 9.437/97, fora criada situação peculiar relativamente à aplicação da norma penal, haja vista que concedido prazo (Lei 10.826/2003, artigos 30 e 32) aos proprietários e possuidores de armas de fogo, de uso permitido ou restrito, para que regularizassem a situação dessas ou efetivassem a sua entrega à autoridade competente, de modo a caracterizar o instituto da abolitio criminis. Entendeu-se que a vacatio legis especial prevista nos artigos 30 e 32 da Lei 10.826/2003 (‘Art. 30. Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas deverão, sob pena de responsabilidade penal, no prazo de 180 dias (cento e oitenta) dias após a publicação desta lei, solicitar o seu registro apresentando nota fiscal de compra ou a comprovação da origem lícita da posse, pelos meios de prova em direito admitidos. Art. 32. Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas poderão, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta lei, entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo e, presumindo-se a boa-fé, poderão ser indenizados, nos termos do regulamento desta lei.’), não obstante tenha tornado atípica a posse ilegal de arma de fogo havida no curso do prazo que assinalou, não subtraiu a ilicitude penal da conduta que já era prevista no art. 10, § 2º, da Lei 9.437/97 e continuou incriminada, com mais rigor, no art. 16 da Lei 10.826/2003. Ausente, assim, estaria o pressuposto fundamental para que se tivesse como caracterizada a abolitio criminis. Ademais, ressaltou-se que o prazo estabelecido nos mencionados dispositivos expressaria o caráter transitório da atipicidade por ele indiretamente criada. No ponto, enfatizou-se que se trataria de norma temporária que não teria força retroativa, não podendo configurar, pois, abolitio criminis em relação aos ilícitos cometidos em data anterior (HC 90.995/SP, rel. min. Menezes Direito, 12.2.2008).”

Ou seja, reconheceu o Supremo Tribunal Federal que havendo dilatação do prazo para entrega ou regularização da arma, a norma encontra-se com sua tipicidade suspensa da data da publicação da norma para o futuro, dentro do prazo limite estabelecido, apesar de não reconhecer-se qualquer caráter retroativo.

No caso atual do novo art. 32 da Lei de Armas, seguindo a orientação do Pretório Excelso exposta anteriormente, teríamos que a conduta cometida em data posterior a 31 de janeiro de 2008 (abrangida pela nova dicção da lei por força da MP nº 417/08), encontrar-se-ia coberta pelo manto da atipicidade temporária.

Polêmica pode surgir sobre a falta de prazo estabelecida pelo novo art. 32 da Lei nº 10.826/03. Afinal, podem os órgãos repressores alegar que a falta de prazo praticamente leva à atipicidade absoluta da conduta. Independente de ter sido ou não esta a vontade original do legislador, outra não pode ser a conclusão. Havendo permissão legislativa expressa para a entrega dos armamentos e sem que exista agora um prazo limite para o fim desse benefício por parte do Estado, a atipicidade torna-se absoluta, não mais temporária, para utilizarmos a dicção do Supremo Tribunal Federal. Pelo menos até que se faça nova alteração do art. 32 da Lei do Desarmamento seja por lei, seja por medida provisória.

Uma tese contrária, com a qual não concordamos, mas que poderia ser levantada por aqueles que desejem manter o viés repressor, seria o de usar supletivamente o prazo estabelecido pelo art. 30 da Lei de Armas. O art. 30 da Lei 10.826/03 também foi modificado pela Medida Provisória nº 417/2008, alterando para a data de 31 de dezembro de 2008 o prazo fatal para que proprietários de armas não registradas requeiram o seu registro junto à Polícia Federal.

Logo, em uma tentativa dos órgãos de repressão para salvar algum caráter punitivo da norma, encontraríamos o prazo máximo de 31 de dezembro de 2008 para entrega do artefato. Mesmo neste caso, que a rigor não tem amparo na nova dicção legal, a conclusão seria de atipicidade temporária da norma desde a data da publicação da Medida Provisória nº 417 (31/01/2008) até a data limite de 31/12/2008.

Gize-se que tal raciocínio foi aqui exposto de maneira supletiva, eis que a exposição de motivos da medida provisória é clara a respeito da ausência de prazo final para a entrega do artefato. Como dito de maneira explícita no item 3 da exposição de motivos, o foco é o desarmamento de uma população possuidora de um arsenal estimado em 14 milhões de armas, não a punição. Medida que merece aplausos.

Frise-se que a alegação de que eventual agente encontrado com arma de fogo não estaria seguindo os ditames trazidos pelo Decreto nº 5.123/04 para a entrega do artefato de fogo às autoridades policiais — solicitação de guia de transporte com data e hora estabelecida — também não pode configurar óbice para o reconhecimento de seu direito a tratamento mais brando.

De fato, a própria existência do decreto e seus requisitos é desconhecida para diversos operadores do Direito, havendo inclusive grande confusão legislativa com a profusão de medidas provisórias que vêm tratar do tema, alterando-se constantemente prazos, havendo grande celeuma sobre a aplicação plena ou atipicidade temporária da norma, sendo, portanto, plenamente aceitável que o agente incorra em verdadeiro erro de proibição a respeito da maneira de entrega do armamento.

Seja como for, a inovação legislativa trouxe novo paradigma para os operadores do Direito que não podem ignorar a mudança na política pública colocando o foco — desta vez de maneira explícita — na mobilização pelo desarmamento da população e não na punição dos indivíduos.


Manuel Guijarro Sanchez Filho, Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro


Boletim IBCCRIM nº 187 - Junho / 2008

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