sábado, 14 de junho de 2008

Artigo: Direito não deve ser interpretado apenas com base na lei

Os votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta em face da Lei de Biossegurança comprovam, induvidosamente, a idéia de que a interpretação, como ali se faz, notadamente nos casos difíceis, adquire contornos de arte.

Valho-me, a propósito, no âmbito da doutrina, da excelência do exemplo citado pelo professor americano Ronald Dworkin no livro “Uma questão de princípios”. Consta, no citado livro, que certo juiz reconhece dano emocional à mãe que presencia o atropelamento de um filho, mas não reconhece com relação à tia que soube desse atropelamento, pelo telefone, a muitos quilômetros de distancia.

Valho-me, de igual modo, do exemplo concreto em que jovens da classe média ateiam fogo num índio que dorme numa parada de ônibus. Houve lesão corporal seguida de morte ou homicídio?

A melhor decisão, em tais casos, será a que mais se aproxima do direito positivo abstraído de valores morais. Vale dizer: as questões alusivas às condições sociais dos autores como filhos de elevadas autoridades inclusive ligadas ao Judiciário, as qualificações das vítimas, e outras de índole morais, devem ser aqui abstraídas... Do contrário, qualquer decisão jurídica adotada jamais redundará pacificada, mas sempre controvertida.

É claro que não se há desconsiderar diante de tão delicadas interpretações os limites como bem assentados no âmbito do devido processo legal a partir da proporcionalidade e da razoabilidade.

Ora, estas variáveis decorrem naturalmente do esforço de interpretação do Direito positivo que, em tese, deve ser abstraído de valores morais. Não se pode desprezar, por conseguinte, a conotação política para a escolha de uma ou de outra técnica de interpretação.

E nem poderia ser diferente. Pois, se nos exemplos acima o juiz teve de eleger a interpretação que lhe pareceu mais adequada, imagine-se, então, o caos que resultaria, se o Direito positivado contemplasse valores de ordem moral. Aí sim, em tal hipótese, o universo de valoração afastaria o mínimo de segurança jurídica.

Neste sentido, a proficiente doutrina de Hans Kelsen quando criou sua “Teoria Pura do Direito”. Ou seja, o Direito em si, quando positivado, abstrai-se de quaisquer conotações de valores morais. Da conotação política, não.

Como se vê, em sendo a atividade jurídica um exaustivo exercício de interpretação e em sendo a interpretação um juízo eminentemente subjetivo ou objetivo do aplicador científico da Lei, que é o juiz, a mim me é dado compreender, então, sem esforço, que a interpretação é uma arte.

Não se há obscurecer que o caráter de contingência ou de surpresa de que se acercam, por vezes, as interpretações jurídicas, propicia insatisfação de toda ordem. Alguns chegam ao exagero de, por isto, comparar o Direito a uma grande piada em alusão à arte do humorista quando interpreta uma boa piada.

A verdade é que o Direito se reveste de um significado psicológico de força, ou seja, de um caráter cogente.

É o que se verifica, por exemplo, quando uma pessoa faminta passa perto de uma banca de vendas e não arrebata frutas ou produtos comestíveis para saciar sua fome.

Por que isto ocorre?

Porque tal pessoa é, também, na prática, um aplicador do Direito, isto é, aplica o Direito que lhe proíbe furtar ou roubar o que a outrem pertence. Em suma, o Direito, na sua mais simples essência, protege a propriedade privada e o próprio sistema de mercado, ou seja, o próprio capitalismo que é inerente à condição humana em vida social...

Quando Marx fundamentou sua tese do materialismo histórico insurgiu-se contra o Direito protetor do capitalismo, ou seja, insurgiu-se, assim, contra o Direito como Estado e contra a própria Igreja que o defendia. Daí porque os marxistas são considerados ateus e proclamadores da extinção do Estado.

O Direito é, portanto, uma questão de interpretação.

Há de se ponderar, enfim, um ponto de equilíbrio como petição de princípio para que o Direito não exceda, em demasia, naquilo que a doutrina denomina de politização da Justiça.

É por isto que a decisão da Justiça criminal é, por exemplo, lenta porquanto objetiva evitar a punição de inocentes. A notícia jornalística, por outro lado, como resultante do direito à informação, é rápida porque se assenta na busca de novidades. O ideal, portanto, como ponto de ponderado equilíbrio, seria a aproximação desses dois pólos sem perder de vista seus reais objetivos que não se coadunam, destarte, com uma imprensa menos dinâmica a ponto de não perquirir novidades e sem informar com isenção ou presteza, e com uma justiça mais célere a ponto de incorrer no risco de punir inocentes.

Há de se considerar, neste sentido, a teoria da decisão jurídica de que é defensor o jurista brasileiro Rosemiro Pereira Leal, em seu livro “Relativização inconstitucional da coisa julgada”, dando conta de que o povo é que é o construtor do Direito e o juiz, quando o interpreta, não pode ir muito além do devido processo legal de modo que seu livre arbítrio consista, tão-só, na escolha política de uma decisão que, de sua vez, há de ser a mais consentânea com a expressão do Direito positivo, pois, só assim, tal decisão redundará legítima diante da idéia de que o poder emana do povo.

Assim, se, num primeiro momento, o povo elege seus políticos, num segundo momento, esse mesmo povo, a partir do conhecimento e da opinião que pelo direito à informação adquire e formula, exige, democrática e abstratamente, condutas morais e éticas de seus políticos.

A melhor idéia de democracia é, por conseguinte, a idéia de segurança e de certeza. Fora desses parâmetros, a idéia de democracia não passa de mero embuste. Vale concluir que a democracia tem, assim, estreita correspondência com o direito à informação e com o pluralismo.

Eis, como se vê, a melhor idéia de que o pluralismo de opiniões, o direito à informação e a própria democracia são garantias constitucionais assentadas como direitos fundamentais que norteiam as nações que mais avançam para uma melhor organização política e social de seus modernos Estados.

Direito e Estado são, ideologicamente, palavras sinônimas. É por isto que quando se diz Estado Democrático de Direito está se dizendo que o povo é quem legitima o Direito que, pelo Estado e sua força cogente, o conduz e o orienta para a conquista dos princípios constitucionais de liberdade, de igualdade e de fraternidade.

O Brasil vive, hoje em dia, um de seus melhores momentos constitucionais, em que pesem os aspectos — ora objetivos, ora subjetivos — de que se acercam as interpretações do Direito que, para uns, não pode ser interpretado em tiras, isto é, aos pedaços, como entende o ministro Eros Graus, e para outros, tem de ser interpretado a partir de sua literalidade sistêmica, como defende o ministro Marco Aurélio e como mais se assenta na doutrina de Rosemiro Leal tal o modo de se garantir, nas decisões judiciais, mais legitimidade da interpretação e menos politização que faz do juiz um autêntico criador negativo da norma jurídica, o que não é sua função.

Como se vê, as decisões em derredor do Direito são infinitas e as decisões jurídicas são finitas para os casos concretos em que pesem por vezes tanto criticadas porque enleadas em critérios controversos ou contingentes não merecendo, por isto, a consideração de piadas, a não ser como piadas de bom gosto... Será?

Por fim, na verdade, a interpretação do Direito assenta-se não somente na compreensão dos textos que integram o mundo do dever ser, mas, também, a real compreensão dos fatores reais de poder, elaborando-se, assim, a passagem da dimensão textual para a dimensão normativa, como pontua o ensinamento do ministro Eros Grau, em seu livro: “O direito posto e o direito pressuposto”.


Por Airton Franco: é delegado de Polícia Federal.


Revista Consultor Jurídico, 14 de junho de 2008

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