sexta-feira, 20 de junho de 2008

Artigo: Variações sobre a Fome

"Vi ontem um bicho, na imundície do pátio, catando comida entre os detritos [...] O bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem." ("O bicho?? de Manuel Bandeira).

Por todo o mundo, apesar de alguns esforços para reduzir a fome, o alimento está se tornando cada vez mais escasso e seu preço já o torna inacessível para muitas pessoas - o preço de itens básicos como arroz, milho e trigo subiu mais de 180% nos últimos três anos. Uma crise mundial de alimentos está começando.

Segundo dados oficiais, 850 milhões de pessoas se deitam toda noite com fome; cerca 20 milhões de pessoas morrem por ano por causa da fome; 1,5 bilhões de pessoas no mundo não dispõem de água potável; 1,1 bilhões de pessoas vivem na pobreza, destas, 630 milhões são extremamente pobres, com renda per capita anual menor que 275 dólares.

A revista alemã Der Spiegel relata que em um ex-presídio - Fort Dimanche - no Haiti, milhares de pessoas empobrecidas vivem revirando pilhas de lixo em busca de alimento, mas mesmo os cães encontram pouco para comer lá. No telhado da antiga prisão, mulheres empreendedoras preparam algo que parece biscoito e até mesmo é chamado assim.

O ingrediente chave, barro amarelo, vem de caminhão das montanhas próximas. O barro é combinado com sal e gordura vegetal para fazer a massa, que então é secada ao sol. Para muitos haitianos, os biscoitos de barro são o único alimento. Eles têm gosto de gordura, sugam a umidade da boca e deixam para trás um gosto de terra.

Eles freqüentemente causam diarréia, mas eles ajudam a aplacar a dor da fome. "Eu espero algum dia ter alimento suficiente para comer, para que possa parar de comer estas coisas", disse Marie Noël, que sobrevive com seus sete filhos dos biscoitos de terra. O barro para produzir 100 biscoitos custa US$ 5 e seu preço subiu US$ 1,50, ou cerca de 40%, em um ano.

O incrível é que as 200 pessoas mais ricas do mundo possuem tanto dinheiro quanto cerca de 40% da população global. Mas isto não vai ficar assim, pois o desespero se transforma em violência, já que, sem nada a perder, pessoas à beira da inanição estão mais propensas a reagirem com uma fúria incontrolável, causando rebeliões e danos cada vez mais freqüentes por todo o mundo.

No Brasil, o presidente Lula tinha prometido erradicar a fome, mas isto não passa de um discurso utópico e demagógico, tendo em vista que ainda falta muito para fazer valer o exercício pleno do direito à alimentação - e outros direitos, já que segundo dados do Fome Zero, 44 milhões de brasileiros passam fome e outros 65 milhões alimentam-se de forma precária.

Em Fortaleza (CE), uma desempregada de 33 anos, grávida, com fome e sem dinheiro, ficou presa por três dias, em uma delegacia, por tentar roubar uma lata de leite em pó de uma padaria. Um verdadeiro absurdo! Embora haja vários motivos para a crise dos alimentos, quero deixar bem claro que hoje o mundo produz alimentos mais do que suficientes para cada pessoa, mas falta vontade política para resolver o problema. As pessoas estão morrendo de fome diante dos nossos olhos, enquanto o mundo assiste. Pergunto: alguém está disposto a enfrentar isto?


Artigo publicado por Neemias Moretti Prudente no Jornal O Diário do Norte do Paraná em 20 de junho de 2008 (sexta-feira), p. A2.

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