segunda-feira, 23 de junho de 2008

Artigo: Crime abominável, por Paulo Brossard*

Sexta-feira é o dia em que escrevo o artigo semanal a ser publicado na segunda. Pois acredite que a sexta vai se tornando dia incômodo pela obrigação de escolher o tema do artigo e este raramente vem a ser prazeroso. O que aconteceu agora, em um dos morros do Rio de Janeiro, foi de estarrecer, e é natural, para não dizer imperioso, que do assunto deva ocupar-me. Depois de presos por motivos menores, três jovens foram libertados e, em vez de serem devolvidos à liberdade, foram confiados a traficantes rivais de favela vizinha. Os liberados informaram a seus algozes que seriam mortos. Com uma expressão escarninha, para um "corretivo", ao que foi dito, foram eles entregues e sem demora executados, com requintes de brutalidade. Um tiro produz o mesmo que 30 tiros, mas a desproporção indica sanha assassina incomum. Os jovens "liberados" imploraram a seus detentores para que não fossem confiados a quem os exterminaria, mas cedo se divulgou e o país ficou a saber da macabra ocorrência. Até o presidente da República teve ciência do fato e o qualificou como "crime abominável". A nação ficou chocada. Onze militares foram indiciados por homicídio triplamente qualificado dos três jovens. Quatro tiveram a prisão preventiva decretada pela Justiça Militar. Nada foi feito porém, pela polícia do Rio no tocante aos assassinos, até agora não identificados.

Este o fato, em meia dúzia de palavras, que espantou a nação. É natural que fatos como esse não contribuam para recomendar o Brasil pelo mundo afora. Até seria o caso de indagar para onde se mudou o "homem cordial", de que falava o saudoso Sérgio Buarque de Holanda.

Estamos diante de um caso em que as autoridades envolvidas desprezaram acintosamente direitos e garantias individuais, no entanto, devem-se ser-lhes assegurados pontualmente direitos e garantias que a lei, em sua impessoalidade, assegura a todos, inclusive ao mais desalmado delinqüente. Não há outro meio da nação de fortalecer-se interna e externamente.

Está na hora de sair desse caso, lamentável sob todos os aspectos. Vou tratar de outro, que não é de hoje. Faz tempos que, duas ou três vezes por ano, os meios de comunicação noticiam com alarde a existência de núcleos de "trabalho escravo" e mais não se diz, sem precisá-lo. O número permanece o mesmo, 20 mil, sem crescer, nem mermar. O mais que se declina é o Estado, no interior do Estado tal ou qual. E ponto final. Sempre me repugnou esse tipo de notícia, que não noticia quase nada, pois se verdadeiro o fato é grave e não pode nem ficar em generalidades e imprecisões. Sempre me pareceu que a notícia desse tipo deveria ser investigada sem demora e de maneira a esclarecer cabalmente o fato noticiado; se verdadeiro, apagá-lo da face da terra, porque indefensável, se falso, divulgar categoricamente a falsidade. Sua gravidade não se concilia com o meio-tom das coisas possíveis, mas improvadas.

O mal que isto pode causar ao país é inegável. Toda vez que li e reli notícias assim, lembrei de antigo diplomata soviético que mantinha atualizado um catálogo de informações acerca de todos os países para jogar contra eles certos dados desairosos, especialmente quando não tinha boas razões para defender a política do seu país, e imaginava como seria útil ao arguto diplomata quando pudesse jogar contra nós a grave imputação, salientando que tais ou quais mazelas eram reconhecidas e proclamadas pela imprensa brasileira. Recentemente, li que os Estados Unidos, para defender a sua política, atacava a do Brasil apontando o "trabalho escravo" aqui existente, como tal reconhecido. Isso não pode ser tolerado. O "trabalho escravo" ou existe no Brasil e tem de ser extirpado e sua eliminação devidamente divulgada, ou não existe e inadmitida sua imputação, por inverídica torná-la pública. Mas não ficar na indefinição das meias palavras.

O bom nome do país não se compadece com a comodidade das obliqüidades. O que aconteceu no Rio de Janeiro, porém, não se trata de meias palavras. Foi mesmo um horror, seja quem for seu responsável.

*Jurista, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal


Zero Hora.

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