quarta-feira, 28 de maio de 2008

Artigo: As prisões no Brasil: o (novo) espanto diante do (antigo) caos

“As críticas ao sistema penitenciário, fundado numa criminologia superada, são abundantes no início do século. Partem de diferentes agentes históricos, ligados a diferentes segmentos da estrutura social. Porém, em sintonias variadas, afirmam a falência do sistema penitenciário.”

Gizlene Neder(1)

Durante um longo período da história da humanidade as penas incidiram sobre o corpo do apenado na forma de sanções que se resumiam a mutilações ou mortes, tendo a prisão como função precípua a custódia do indivíduo até o momento da aplicação da sanção. Somente no século XIX é que surge a prisão enquanto pena, substituindo os suplícios e torturas. Conforme Ferrajoli,(2) se fosse possível estabelecermos uma comparação entre a história das penas e a dos crimes, perceberíamos que a história das penas é muito mais sangrenta e cruel. Por isso, entende-se que a prisão representou um avanço e “humanização”. Paulatinamente a pena de prisão passou a ocupar um lugar de destaque entre as sanções, sendo considerada a principal das penas. Assim, foram desenvolvidas algumas teorias para justificar e legitimar a privação da liberdade: prevenção geral, prevenção especial, defesa social etc.

Na formação histórico-social brasileira, a história do sistema penitenciário está indelevelmente marcada pelo confinamento e extermínio. O desenvolvimento de argumentações em torno de “moldes ideais” do sistema penitenciário revela, de um lado, os reclames acerca de sua precariedade, insuficiência e ineficácia; de outro, apresenta o delineamento de um processo de ideologização que tramitava conjuntamente à formação do mercado de trabalho na passagem ao capitalismo no Brasil.(3)

Feitas essas breves considerações, cumpre destacar que, notícias recentes trouxeram a lume, mais uma vez, o que sempre foi a regra no sistema penitenciário brasileiro: nossas prisões são as piores do mundo! Fala-se em “crise”, em “falência” do sistema prisional, entretanto, crise pressupõe um período de estabilidade, o que na verdade nunca ocorreu. Falido é o sistema que não se presta à sua finalidade. Nesse aspecto não se pode pensar em falência, uma vez que, a despeito das teorias “justificadoras” de “ressocialização” e outros tantos “res”, a prisão cumpre e sempre cumpriu perfeitamente sua função de instrumento de controle social.

No Brasil-Colônia e no Brasil-Império, os desviantes eram controlados pelos capitães-do-mato, que a mando dos senhores perseguiam os escravos “fujões” e aplicavam-lhes açoites e chibatadas. Precisava-se de corpos dóceis e em condições de trabalhar em prol dos interesses da elite e da Coroa. Com a Lei Áurea, o aparelho repressor volta-se contra aqueles considerados vadios, isto é, os ex-escravos que não conseguiam empregos e os famosos e temidos capoeiras.(4) Durante os períodos de ditadura, a repressão recaía sobre os subversivos.

Atualmente, o objeto de atenção do sistema penal é polimorfo. A cada instante criam-se novos inimigos da sociedade: traficantes, terroristas etc., o que possibilita uma constante renovação e alargamento da abrangência do aparelho repressor estatal.

Na “guerra” contra a violência e criminalidade o “combate” ao inimigo admite todas as possibilidades, inclusive a eliminação. Prima-se pela repressão em detrimento da prevenção. Nesse contexto, o número de pessoas presas é cada vez maior. Segundo dados divulgados pelo Ministério da Justiça,(5) em julho de 2007 o Brasil tinha mais de quatrocentos e dezenove mil, quinhentas e cinqüenta e uma pessoas privadas da liberdade.

Não é novidade que a mentalidade reinante é a de puramente castigar e não recuperar, o que torna letra morta o artigo 1º da Lei de Execução Penal, que prevê como finalidade da pena de prisão proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado. Atribui-se, teoricamente, à prisão um caráter pedagógico, capaz de auxiliar na futura reinserção social. Contudo, na prática, verifica-se que a pena não tem condições de prevenir a criminalidade, seja no âmbito geral ou especial, bem como de proporcionar condições concretas de inclusão social, restando-lhe somente o caráter retributivo. Ressalte-se que a noção de retribuição é incompatível com o modelo de Estado Democrático de Direito, o qual vincula a pena, em especial a de prisão, à sua necessidade e racionalidade. Prender só por prender não é racional. A relação custo/benefício decorrente da aplicação de penas privativas de liberdade, tão ao gosto da sociedade de mercado, resulta em prejuízo para o apenado e para a sociedade.

A Lei de Execuções Penais encontra-se em vigência desde 1984. Para a época, representou um avanço, pois sistematizou e unificou as normas de tratamento das pessoas privadas de sua liberdade, assegurando-lhes direitos e deveres. Do mesmo modo, o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 representa um marco na proteção de direitos assegurados aos presos, ampliando de maneira significativa o rol de direitos e garantias fundamentais.(6)

Cabe ressaltar que tem passado despercebido o fato de que a LEP é anterior à entrada em vigor da Constituição de 1988. Em face disso, desde a perspectiva do constitucionalismo germânico, as leis infraconstitucionais devem ajustar-se aos valores e princípios preceituados na Carta Magna. Isto implica, necessariamente, uma (re)leitura da LEP e, sobretudo das práticas em matéria de execução penal, a partir dos novos valores e princípios consagrados na Lei Fundamental.

Outro fator relevante diz respeito ao fato de que atos de violência contra os presos são encorajados pela impunidade que prevalece. De fato, poucos incidentes de abusos físicos contra encarcerados são efetivamente investigados e punidos. Apenas alguns poucos flagrados pela mídia parecem merecer investigação e o conseqüente processo e, mesmo assim, a condenação dos culpados é extremamente rara. Em outras palavras, o Estado figura cada vez mais como partícipe, por ação ou omissão, sendo, nesse sentido, co-responsável pelos altos níveis de violência institucional da qual os detentos são vítimas, num evidente atavismo político e jurídico. Essa apatia pública, esse total descaso com a integridade do preso não é surpresa e certamente se deve à própria origem da clientela do sistema: a grande maioria é composta por pessoas oriundas das classes mais pobres, sem educação e politicamente impotentes.

Acontecimentos como o da prisão de Abaetetuba, no Pará, onde uma adolescente de dezesseis anos ficou presa em uma cela com vinte homens, sofrendo violência sexual, bem como o dos presos acorrentados em frente a uma delegacia no estado de Santa Catarina, infelizmente, embora causem espanto, são fatos comuns e recorrentes que demonstram que o Estado brasileiro está à margem da própria Constituição e suas autoridades não reconhecem a dignidade dos encarcerados, evidenciando o desprezo reinante pelo mais básico dos direitos humanos, ou seja, pela humanidade das pessoas privadas da liberdade.

Notas

(1) NEDER, Gizlene. Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995, p. 94.

(2) FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. 7ª ed. Madrid: Editorial Trotta, 2005, p. 365.

(3) Op. cit., p. 95.

(4) O Código Penal da República promulgado em 1890, em substituição ao Código Criminal de 1830, incluiu pela primeira vez uma disposição proibindo especificamente praticar nas ruas e praças públicas “o exercício de agilidade e destreza corporal conhecido pelo nome de capoeiragem”. A pena era prisão de dois a seis meses na primeira vez e de um a três anos numa colônia penal remota, em caso de reincidência. Cf. HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: Repressão e Resistência numa Cidade do Século XIX. Tradução de Francisco de Castro Azevedo. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997, pp. 206-207.

(5) Os dados estão disponíveis no site do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) (BRASIL, Ministério da Justiça, s.d.).

(6) A Constituição Federal de 1824 possuía somente cinco dispositivos destinados aos direitos das pessoas privadas da liberdade.


Por:

Márcia Adriana Fernandes
Advogada, professora de Direito Penal e Execução Penal na UCAM e secretária executiva da Associação pela Reforma Prisional e Mestre em Ciências Penais (Universidade Cândido Mendes – RJ)

Vany Leston Pessione
Advogada, professora de Direito Penal na Sociedade Unificada de Ensino Superior e Cultura (SUESC), mestre em Ciências Penais (Universidade Candido Mendes - RJ) e doutoranda em Direito pela Universidad Del Museo Social Argentino (AR)



Boletim IBCCRIM nº 186 - Maio / 2008

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog