domingo, 20 de abril de 2008

O crime é cosa nostra'

De como o assassinato é ao mesmo tempo estranho e familiar, ameaçador e íntimo.

SÃO PAULO - Luiz Alfredo Garcia-Roza começou pelo fim. Nas primeiras páginas de O Silêncio da Chuva, seu romance de estréia, ele revela com todas as vírgulas quem matou o executivo que saboreava lentamente seu último cigarro no estacionamento de um prédio em Copacabana. Se o leitor queria o autor do crime, ei-lo. O que interessava, de fato, vinha depois.

Para esse carioca de Copacabana, professor de filosofia e psicologia da UFRJ durante 40 anos, hoje criador obstinado de romances policiais, o nono deles em obras, o assassinato ultrapassa, e muito, o ato em si. O que leva uma pessoa a cometer um crime, diz Garcia-Roza, remete a uma trama complexa de motivos, conscientes e inconscientes. "Não é um problema a ser resolvido, mas um enigma a ser decifrado."

O povo, aparentemente, não chegou a esse nível de interpretação quanto ao caso Isabella Nardoni, a garota de 5 anos atirada da janela do apartamento do pai no dia 29 de março. A descoberta do assassino é um problema crucial, imediato, insuportável. "Não é que estejamos famintos ou sedentos de justiça", decifra o escritor. Queremos é suspirar aliviados, felizmente ficaria comprovado que não fomos nós. Porque, segundo Garcia-Roza, personificando Espinosa, seu personagem-detetive, sabemos inconscientemente que poderíamos ter cometido aquele crime. Como já cometemos coisas do gênero inúmeras vezes em sonhos ou fantasias.

Por que o crime de morte desperta tanta curiosidade?

Porque ele é ao mesmo tempo estranho e familiar, ameaçador e íntimo. Enquanto familiar e íntimo ele nos atrai; enquanto estranho e ameaçador ele nos repele. Se levarmos em consideração o fato de que todas as noites, em nossos sonhos, matamos e cometemos toda a sorte de perversidade com pessoas que nos são queridas, não é difícil entender que o crime e a atração mórbida façam parte da nossa interioridade. O mal não é algo externo a nós, mas algo que nos habita. Assim como repetimos todas as noites nossos pequenos assassinatos, sentimo-nos atraídos pelos assassinatos alheios. O crime é cosa nostra.

Ainda que não nos lembremos de muitos sonhos?

Às vezes até lembramos, às vezes nos protegemos quando a vítima aparece distorcida. Mas, de qualquer maneira, somos os autores desses sonhos e neles matamos pai, mãe, marido, mulher, irmão. Do ponto de vista da sexualidade, também cometemos barbaridades.

Mas isso está no campo da inconsciência.

Não importa se é consciente ou inconsciente. Isso não diminui o afeto ligado a ele. O crime que cometemos durante a noite é até muito mais intenso do que aquele cometido por outro a distância. O meu sonho me diz respeito muito mais de perto do que o crime alheio. Ora, na medida em que o crime alheio é um crime, e na medida em que eu também sou, a meu modo, um pequeno criminoso, eu me sinto irmão do outro nesse crime. Daí a atração.

O fato de alguns assassinos não assumirem o crime tem algo a ver com essa inconsciência?

Não. Você conta o sonho, tanto que, quando vai ao analista, essa é a matéria-prima do seu cotidiano analítico. Pode, inclusive, dizer tranqüilamente que matou o seu filho no sonho. Só que o sonho sonhado e o sonho contado são coisas diferentes. Em geral, aquilo que você relata já sofreu tal transformação em relação ao que de fato provocou o sonho que perde um pouco da importância. Agora, quando um assassino não confessa seu crime, é outra história. A defesa dele não é a defesa que se dá entre inconsciente, pré-consciente e consciente. É uma defesa que se dá toda em nível consciente. Existe a ameaça clara de que, se confessar, vai preso.

Quando se descobre o assassino, o crime perde o atrativo?

No meu último livro, uso uma frase do Edgard Allan Poe que diz o seguinte: "A essência de todo crime permanece irrevelada". O crime ultrapassa, e muito, o ato pelo qual uma pessoa matou outra. O assassinato, assim como o suicídio, é uma significação. Não pode ser reduzido a um comportamento. Os animais são capazes apenas de comportamento (behavior). O ser humano, não. Encontrar o culpado, o whodunit (expressão que vem de who done it?, "quem fez isso?"), somente aponta e descreve um comportamento, como poderíamos descrever o leão perseguindo e abocanhando a gazela. A cena do crime é uma realidade complexa, formada de uma pluralidade de signos que nos remetem a uma outra cena, cujos significados não são evidentes, mesmo que se descubra quem deu o tiro. O que levou o assassino a cometer o crime pode nos conduzir a uma trama complexa de motivos, conscientes e inconscientes, impossível de ser revelada integralmente.

O que, na nossa sociedade, seriam agravantes de um crime?

Quando falamos de agravante e atenuante precisamos saber em função do quê falamos isso. Uma coisa é a agravante e a atenuante em relação à lei, outra é a agravante e a atenuante em relação a uma avaliação psicológica, psiquiátrica, psicanalítica. Existe a agravante sociológica, a atenuante econômica. Em suma, as agravantes e as atenuantes serão tantas quantas forem as interpretações que se fizer daquele crime.

O crime passional, ou aquele motivado por vingança, tem suas justificativas?

O assassinato nunca é justificável. O fato de um crime de morte ter como motivo imediato a vingança quanto a um ato hediondo, por exemplo, não elimina o fato de ele ser um assassinato. Você tem uma compreensão possível, mas não uma justificativa. Claro que se pode dizer que essa pessoa estava tomada pela ira dos deuses ou dos demônios, estava enlouquecida. Isso até pode ser apontado como atenuante no sentido de que o sujeito estava fora de si, talvez atenue o peso da pena, mas aquele ato continua sendo crime.

Como o senhor explicaria o assassinato de uma criança?

O crime contra uma criança não é explicável, tampouco justificável. O que podemos dizer é que o criminoso, nesse caso, ultrapassou o limite da razão e procedeu segundo uma lógica perversa, para além do prazer, uma lógica do mal pelo mal.

Existe crime sem motivação?

Se por motivação você entender desejo, não. Mesmo que imaginássemos um ser puramente pulsional, se essa pulsão não encontrou sua expressão num desejo - e, portanto, na linguagem -, ela será anárquica, indeterminada, não capturada pela linguagem. Portanto, não poderá ser "criminosa".

A família é um cenário propício à violência?

Sem dúvida. A família é o teatro privilegiado dos desejos mais intensos e dos conflitos mais dilacerantes. É, por excelência, o cenário principal. É ali que se dão os parricídios, os incestos, os crimes hediondos da humanidade e, ao mesmo tempo, os crimes que fundam a humanidade. Se a família envolvida em um crime tiver uma estrutura semelhante à sua, o envolvimento obviamente é maior. Você sofre por ela, e também se assusta com ela.

Vilões tradicionais persistem nas tramas modernas?

Isso é um estereótipo que dificilmente se verifica. Se houve um crime no castelo, logo se procura o mordomo porque ele é um frágil. Não se vai buscar de imediato o conde, o barão, o nobre. O mordomo, por sua vez, vai procurar o cozinheiro. Ao mesmo tempo, o mordomo (e o cozinheiro) são extramuros, apesar de viverem intramuros. É a idéia de que o mal é exterior, de que vem de fora da família, do castelo, da cidade.

O senhor escolheu a cidade do Rio de Janeiro como pano de fundo para seus romances. A metrópole é um lugar privilegiado para o surgimento da criminalidade?

Sim. É com o nascimento da grande cidade que surge a polícia investigativa, a polícia repressora, as histórias de detetive. O romance policial desponta com Allan Poe em plenas Nova York e Londres no final do século passado. Na grande cidade você pode se perder, mas também pode cometer um crime e se ocultar. É difícil ocorrer assassinatos em série numa pequena cidade do interior porque todo mundo conhece todo mundo. Um detetive numa aldeia é uma figura totalmente inútil.

A figura do legista também surgiu daí?

A medicina legal faz parte de um conjunto de aparatos públicos ou privados ligados a uma finalidade que não existia antes. Surge a impressão digital como forma de identificação das pessoas. Surge o DNA, que aponta com segurança quem esteve em tal lugar.

O DNA virou personagem fundamental dos enredos policiais?

O DNA não responde por tudo, apenas diz que aquele sangue que estava ali é seu. Mas, assim como o médico vem cada vez mais trocando o exame clínico pela tecnologia, o policial tem transferido muito do seu olhar e faro para a ação da polícia técnica.

Perdemos com essa transferência?

Sim, porque aí está se reduzindo o crime a um comportamento. Como disse, ele é muito mais do que isso, é uma significação. Não é um problema a ser resolvido, mas um enigma a ser decifrado. Não é possível reduzi-lo às idéias claras e distintas do cartesianismo ou do racionalismo cientificista. O enigma possui uma opacidade que lhe é essencial. A verdade não é toda luminosa e transparente, ela também é feita de sombra, e essa sombra não é um defeito, algo a ser eliminado em nome da transparência da razão, mas lhe é essencial. Verdade e engano são complementares, e não excludentes. É nessa região de sombra do enigma que reside a ambigüidade. E é essa ambigüidade essencial que torna impossível a univocidade da verdade e a interpretação total ou definitiva do enigma.

Para uma sociedade que se sente ameaçada, ele é um problema.

Sem dúvida, mesmo porque é mais fácil transformar um crime num problema. Quando visto assim, é só uma questão de equacionar. Aí deduz e resolve. O enigma não. O enigma tem que ser indecifrável, não pode ser problematizado. A decifração dele se faz ao infinito, a interpretação é interminável. É como um livro, um poema, um acontecimento. Ele é interpretável indefinidamente.

As pessoas suportam esse caráter indefinido?

Incomoda o ato de você dizer, na psicanálise, que a interpretação do sonho é indefinida. Sim, é interminável, mas não interminada. É interminável porque você pode prosseguir no processo interpretativo enquanto o analista e o analisando estiverem vivos. O que não quer dizer que, num belo dia, você chegue e diga: "Acho que podemos botar um ponto final aqui". Embora a interpretação possa seguir indefinidamente, o que se fez até então foi suficiente para que o analisando possa prosseguir sozinho. Complicado é esse ponto de basta. É como a prova de amor. Você faz uma declaração, escreve um poema, dá um presente, isso não tem fim. Por quê? Porque, por mais que você garanta ao outro o seu amor, basta um olhar seu para ele interpretar como desamor. E começa tudo outra vez. A significação é permanentemente interpretável, ao passo que o comportamento não. O leão comeu a gazela. Está lá. Ao passo que o simples declarar amor a alguém pode pedir uma vida inteira de provas.

As técnicas para se desvendar um assassinato tornaram a idéia do crime perfeito ainda mais improvável?

O crime perfeito é aquele que nem sequer sabemos que aconteceu.

Que papel as testemunhas desempenham em tramas criminosas?

As testemunhas são intérpretes leigos. Leigos no sentido de selvagem, não são pessoas formadas criticamente no exercício disso. Esses intérpretes leigos vão, com suas fantasias, multiplicar ao infinito a significação do acontecimento. O mesmo comportamento de uma pessoa pode ser interpretado por cinco pessoas diferentes, de cinco maneiras diferentes, algumas até bastante contraditórias. São todos espectadores. Se entre as testemunhas houver um médico legista ou um policial, o depoimento deles é mais forte, a menos que abram mão dessa postura investigativa e olhem o crime como pessoas comuns.

É possível estabelecer relação entre a prática psicanalítica e o trabalho do detetive?

Os dois possuem como ponto de partida a recusa do dado, aquilo que se apresenta como verdadeiro porque tido como evidência sensível, como certeza. Mas o dado sensível é uma ilusão. Todo dado já é um constructo. Daí, toda certeza sensível ser ilusória. O psicanalista e o detetive, e eu também incluiria aqui a figura do filósofo, empreendem a busca de uma verdade que está para além do dado imediato. São práticas da suspeita. Mas, enquanto os conceitos científicos são feitos de idéias claras e distintas, os signos psicanalíticos são compostos de obscuridade, ocultamento, tropeços, falhas, esquecimentos. A ciência trabalha na plena luz das suas idéias; a psicanálise, nas sombras e obscuridades do desejo.

SEXTA, 11 DE ABRIL
Suspeitos são libertados
Depois de 9 dias de prisão, o casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, pai e madrasta de Isabella Nardoni, é libertado. O desembargador Caio Almeida, que concedeu o habeas-corpus, considerou que não há indícios de que os dois desejem atrapalhar as investigações.


O CENÁRIO
"A família é o teatro privilegiado dos conflitos mais dilacerantes"

AS TESTEMUNHAS
"São intérpretes leigos, capazes de multiplicar ao infinito a significação do acontecimento"


Estadão, 20/04/2008.

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