terça-feira, 22 de abril de 2008

O cárcere da desumanidade - No coração do Haiti

Na terceiro e último dia da série No coração do Haiti, um retrato da vida e da morte dentro e fora de uma das mais terríveis prisões das Américas:

O grande relógio na sala de entrada da Prisão Civil da capital do Haiti, Porto
Príncipe, apontava 10h. Era segunda-feira, 24 de março, dia e horário marcados para a visita a um dos piores centros de detenção das Américas. Do lado de fora, uma longa fila de mulheres bem vestidas, com sacolas nas mãos, formava-se na lateral da penitenciária. A disputa pela sombra de uma marquise era intensa. Vozes se misturavam. As mulheres conversavam sobre assuntos variados, enquanto esperavam para entrar na prisão. Levavam comida, água e alguns itens de higiene pessoal. Algumas transportavam livros, revistas, qualquer objeto que pudesse ajudar os detentos a passar o tempo.

As mulheres levam aos presos o que o sistema não fornece

As visitas na prisão de Porto Príncipe não são raras. Pelo contrário. As filas se formam duas vezes por dia. Uma delas ocupa praticamente a manhã toda. Outra estende-se durante a tarde, sempre de segunda à sexta-feira. As mulheres levam aos presos o que o sistema não fornece. Apesar de a refeição no presídio ser servida duas vezes ao dia, as restrições no cardápio nutrem a peregrinação das mulheres em frente à casa de detenção.

Lá dentro, onde a direção do presídio não permitiu fotografias, há um refeitório com sete grandes fogões. O modo de cozinhar os alimentos contrasta com a realidade de fora das grades. Na prisão, o fogão é a gás, e não a carvão (principal combustível usado pelos haitianos). Nas panelas, arroz com feijão, gengibre e coco ralado.

Tudo é comido com as mãos. Talheres são objetos praticamente inexistentes até para quem vive em liberdade no Haiti. Carne é servida no presídio três vezes por semana. A primeira refeição do dia é servida logo ao nascer do sol, por volta das 5h. A segunda, entre 12h e 14h. Depois disso, os presos só comem algo se as famílias levarem.

A água, artigo de luxo até para quem está fora da prisão, torna-se ouro diante dos olhos dos presos. As famílias levam galões do líquido. Os recipientes retornam de trás das grades vazios, entregues por mãos que atravessam desesperadas o espaço entre o pátio, onde ficam os presos, e o espaço interno destinado para os familiares.

A ordem criada dentro do caos é impressionante. Não há gritos. Não há desrespeito com as mulheres. Naquela segunda-feira, havia 3.341 presos para 600 vagas disponíveis, de acordo com o diretor administrativo do presídio, Jean Roland Crévilon.

Superlotação não é novidade nas prisões haitianas, mas as proporções tomaram níveis maiores desde a crise no país em 2004, quando muitas penitenciárias foram queimadas. Na prisão de Porto Príncipe, não há celas para a maioria dos presos. Apenas os mais perigosos ficam isolados. Os doentes, principalmente tuberculosos e portadores do vírus HIV, dividem o mesmo espaço de isolamento independentemente da idade. Até crianças e adolescentes estão lá. Os demais ficam expostos em um grande espaço, cercado por muros altos. Visto de cima, alguns se apertam próximo à parede em busca de uma mísera sombra. Outros, sem chance de conseguir espaço, desistem. Ficam sentados no chão, na pedra quente. Esperam uma solução para o que nem eles sabem se um dia terá solução.

Leis aprovadas no Haiti, mas que ainda não entraram em vigor:

Estatuto da magistratura
Prevê a criação de carreira para os juízes, despolitização da carreira (antes eram indicados) e salários considerados mais "dignos".

Escola de Magistratura
Prevê a construção de uma escola de magistratura para a formação dos juízes.

Criação de um Conselho Superior de Magistratura
Seria formado por juízes, sociedade civil e representantes da Ordem dos Advogados do Haiti.
A cada refeição no presídio da capital são consumidos 21 sacos de arroz, seis sacos de feijão e três caixas de azeite.
A segurança do presídio é feita pela Guarda Nacional do Haiti. Cada policial trabalha seis horas diárias.
A média de entrada no presídio é de 18 a 20 homens por dia. A saída é variada. Há dias em que saem três. Em outros, até 10.
O registro de entrada e saída dos presos é feito à mão. Somente após o registro é que os dados são informatizados.


Zero Hora, 22/04/2008.

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