sábado, 26 de abril de 2008

Artigo: Irracionalidade jurídica, por Carmen Hein de Campos*

A notícia de que o Ministério Público Estadual de Mato Grosso do Sul pretende processar cerca de 10 mil mulheres pela prática do aborto tornou o crime de aborto o mais importante delito de gênero cometido em solo brasileiro. Os números evidenciam uma prática discriminatória, violadora dos direitos fundamentais das mulheres e, ainda, o uso político do sistema de justiça criminal pelos agentes de Estado.

A situação em Campo Grande é tão absurda, que a Delegacia de Polícia e o Ministério Público não fariam mais nada nos próximos anos a não ser ouvir as mulheres que freqüentaram a clínica, produzir inquéritos policiais e denúncias.

Se computássemos o número de abortos clandestina e anualmente realizados no Brasil, seríamos 1 milhão de mulheres processadas por ano. Não haveria estrutura judicial que comportasse tamanha persecução penal.

O uso político do direito e do sistema de justiça criminal, como bem lembrou José Geraldo Sousa Júnior, já foi utilizado para perseguir os comunistas e diversos movimentos sociais. Agora, parece que estão a reeditar a Inquisição, a caça às bruxas e a declarar guerra ao mais novo inimigo interno: as mulheres que, por diversas razões morais, não desejaram ter um filho em determinada circunstância ou momento em suas vidas.

As mulheres fazem e continuarão fazendo aborto por absoluta falta de outra alternativa e independentemente da proibição legal, o que demonstra a ineficácia e a completa falência da criminalização. Uma norma penal que é sistematicamente desobedecida é uma norma que perdeu seu sentido social e reclama urgente revisão. Não será o indiciamento dessas mulheres que irá mudar a realidade social do aborto no país. Somente políticas públicas de planejamento familiar, acesso à informação, a métodos contraceptivos e a possibilidade de interromper a gravidez de modo seguro no sistema de saúde pública constituem-se em medidas sérias no campo da saúde sexual e reprodutiva. Nesse campo, a melhor política criminal é a descriminalização, uma saída honrosa para o sistema de justiça criminal.

*Advogada


Zero Hora, 26/04/2008.

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