quinta-feira, 3 de abril de 2008

Artigo: Cultura de ódio

Paulo Eduardo Busse Ferreira Filho

Advogado criminal/SP

O grande mérito do filme Tropa de Elite foi escancarar de vez o debate sobre aspectos recônditos da violência no país, e descortinar intolerâncias enrustidas há muito na alma do brasileiro de todas as classes e tendências. O filme nada criou. Retrata uma realidade e provoca as mais diversas reações. Cada um o lê como quer, com a lente dos próprios preconceitos. Há os que aplaudem e ovacionam a ação dos “caveiras”. Outros a abominam. Muitos sentem necessidade premente de se posicionar nesse debate. Antes, porém, seria melhor permanecerem um pouco mais na dúvida de Hamlet.

Os mais ricos perfilam-se ao Luciano Huck, que só clama por justiça quando lhe surrupiam o rolex. Os que se vêem de esquerda regozijam-se com o Ferréz. Intelectuais acusam o filme e seu diretor de apologia nazi-fascista, incriminação dos usuários de entorpecentes etc. Se hoje houvesse um plebiscito, ganhariam o BOPE e a pena de morte. Nesse entrechoque de idéias e espíritos sedentos por sangue, a Constituição ainda é uma fronteira de bom senso, um mecanismo elaborado pelos homens em momentos de lucidez para se protegerem de si próprios nestes tempos de insanidade.

Violência só gera mais violência. O BOPE emerge em uma sociedade impregnada de ódio, obcecada por vingança. Políticos manipulam habilmente esse sentimento latente no povo e, assim, ganham votos e eleições. Da direita à esquerda, o discurso é pelo recrudescimento do sistema penal, a flexibilização das garantias e a brutalização das forças de segurança. O BOPE é a concretização de um sonho macabro.

O narcotráfico, verdadeiro nó górdio da questão, não é a causa deste fenômeno, mas sua principal justificativa. Demonizam-se os traficantes porque todos precisamos de demônios para exorcizar. Numa cultura globalizada, o fenômeno repete-se em todos os lugares. Os americanos elegeram Bush que apontou Bin Laden e os árabes como os inimigos a combater. A esses não-cidadãos, negam-se os direitos e garantias. Os fundamentalistas islâmicos fazem o mesmo com os americanos. O termo terrorista é banalizado. De uma forma ou de outra, todos os que estão no poder do mundo lucram com o fenômeno: políticos, financistas, homens de negócios, traficantes, banqueiros etc. Como diz o jornalista britânico Robert Fisk, se o principal produto do Iraque fosse aspargo lá não se faria nenhuma guerra. Se o tráfico não gerasse fortunas, ou se a proibição não constituísse em si um negócio bilionário, não haveria toda a violência que circunda a atividade. A violência em si é um grande negócio. A mesma indústria bélica que alimenta os soldados em guerras declaradas também lucra com o combate ao narcotráfico. As mesmas empresas que especulam e enriquecem com os conflitos no Oriente Médio igualmente ganham com a doutrina antidrogas.

É justamente essa política que relaciona e cataloga os inimigos da sociedade, e responsabiliza o tráfico por todos os males do mundo, a causa número um da violência nas favelas. Não nos iludamos. Queremos evitar mais mortes? Então comecemos por descriminalizar o comércio de drogas, regular a atividade e tratar os dependentes como o que realmente são: doentes. E extirpar o tão pernicioso preconceito aos usuários. Chega de hipocrisia. Quem quiser, hoje, uma porção de maconha ou cocaína não terá nenhuma dificuldade em conseguir. E o que é mais nocivo: um baseado ou uma dose de uísque ou cachaça? Para que (ou a quem) serve o crime de tráfico, afinal?

Nem o Luciano Huck nem o Ferréz. Assim como o BOPE e os traficantes, são todos subprodutos de uma luta instintiva e irracional. Suas reações, óbvias e marcadas por rancores. A passiva e abstrusa hipocrisia dos ponderados também alimenta esse ciclo altamente vicioso. Políticos reelegem-se a empunhar a bandeira da radicalização no combate ao crime ligado ao tráfico, enquanto crianças cada vez mais tenras sucumbem nesta guerra plenamente evitável. A justiça pública transmuta-se, sempre mais, em justiçamento. A sociedade clama por mais condenações, ainda que injustas. A mídia alardeia a impunidade, quando deveria falar na sensação de insegurança que ela própria ajuda a estabelecer. Nas periferias, sempre houve essa sensação de desproteção, mas pouquíssimo se fala em impunidade. Nas chamadas zonas de risco, sabe-se muito bem que pobre sempre vai preso mesmo, quando mata ou quando furta um sabonete. Ao contrário do que aduz o Reinaldo Azevedo, nem todo preso é bandido ou homicida. Há muito, o sistema penal brasileiro encarcera o desprovido independentemente de culpa comprovada. São os mais ricos, quando atingidos por violências perdidas, os que organizam passeatas a reclamar da impunidade. Os mesmos que agora aplaudem o BOPE nas telas dos cinemas. Aos moradores das favelas, o Estado continua a mostrar a sua face mais brutal. Agora sobe os morros de caveirão.

Definitivamente, a saída não é o ódio. A idéia tampouco seria estender aos abastados o desrespeito secularmente dispensado aos desprotegidos da nação. Não seria vingar o pobre com a prisão do rico. Aqui, defende-se o contrário. Assim como os nobres, a plebe também faz jus a bons advogados e boas defesas. O Estado deveria prover meios para que todos fossem respeitados desde a abordagem da polícia até o Supremo. Não há que se falar em impunidade se o processado foi absolvido ao término de uma instrução que respeitou as regras do Direito, o devido processo legal. Isto não é impunidade; chama-se Justiça. Já a sensação de insegurança, esta só aumentará em comunidades assim impregnadas pelo ódio, um ódio difuso, que necessita de demônios e os elege de preferência bem longe de casa, para que o sangue não espirre nas paredes ou emporcalhe os tapetes persas, de preferência em favelas labirínticas e de acesso dificílimo. Materializa-se esse ódio numa força ensandecida e se a direciona para uma verdadeira limpeza social. Para o deleite de “cidadãos de bem” que, entorpecidos, convertem-se em justiceiros, elegem representantes e viram as costas para o país. Cada vez mais comerciantes em seus motivos, os políticos fornecem o produto que lhes é encomendado. A tropa de elite é uma tropa para a elite experimentar uma fugaz e ilusória sensação de segurança.


Fonte: FERREIRA FILHO, Paulo Eduardo Busse. Cultura de ódio. Disponível na internet www.ibccrim.org.br 03.04.2008.

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