terça-feira, 29 de abril de 2008

Artigo - A "brincadeira do desmaio" e a teoria da imputação objetiva

Marcelo Xavier de Freitas Crespo

Advogado, mestrando em Direito Penal (USP), professor de Direito Penal e Processo Penal na EPD e professor assistente monitor (PAE) na USP


Foi-se o tempo em que os jovens reuniam-se para jogos, discussões sobre amenidades, futilidades, bandas de rock ou ídolos em geral. Tampouco os videogames de última geração parecem mais interessar. Recentemente as reuniões têm objetivo muito menos inofensivo, gerando até mesmo risco de morte.

Referimo-nos à “brincadeira do desmaio” cuja denominação pode variar: jeu de foulard, fainting game, entre várias outras. Eis seu funcionamento: aquele que quer desmaiar provoca uma hiperventilação nos pulmões abaixando-se (posição de cócoras) e respirando profundamente, eliminando grande quantidade de gás carbônico, aumentando a oxigenação e facilitando que se prenda a respiração por mais tempo. Em seguida outra pessoa pressiona a carótida, o pescoço ou o peito daquele que busca, com a sufocação, “sentir um barato”, o que propicia o acúmulo de dióxido de carbono, causando tontura e alucinação (pela falta de oxigênio no cérebro) e, por fim, um “breve” desmaio. É esse o barato que os jovens têm buscado. Os inconseqüentes apenas não se deram conta de que a brincadeira pode ser fatal, seja pelos ferimentos decorrentes da própria queda, seja por sofrer parada cardiorrespiratória pelo longo tempo sem respirar.(1)

O problema é tão sério que o governo francês lançou campanha alertando o perigo desse hábito, vez que naquele país foram registradas centenas de mortes em razão da dita “brincadeira”.(2) Nos Estados Unidos, a fundação “Dylan Blake”, criada pelo pai de um garoto falecido com a sufocação, fornece dados bastante completos sobre a atividade de mau gosto. Além disso, já se pode verificar ocorrências para a brincadeira na internet em sites como os de relacionamento, de divulgação de vídeos, havendo até reportagens brasileiras sobre o tema.(3)

Tendo em vista o panorama mundial da “brincadeira”, mormente pelas mortes ocorridas, passamos agora a analisá-la sob a ótica do Direito Penal, mais precisamente à luz da Teoria da Imputação Objetiva.

Em apertadíssima síntese, pode-se dizer que o nexo causal sempre esteve presente nas discussões penais vez que as teorias que o explicavam, como a da conditio sine qua non e a da causalidade adequada sempre foram questionadas.(4) A partir dos estudos de Honig que foram aperfeiçoados por Roxin,(5) chegou-se à Teoria da Imputação Objetiva, que busca fazer releitura do nexo, atribuindo às pessoas apenas condutas juridicamente relevantes. E, para a verificação da relevância jurídica da conduta, passou-se a considerar a criação ou incremento de riscos, dentre outros critérios de inclusão e exclusão da imputação.(6)

Os riscos, inerentes a todas as sociedades, são até desejáveis ao desenvolvimento econômico e social. Diga-se, porém, que apenas ações que geram risco devem ser proibidas, mas nem todo perigo deve ser proibido. Que seria do transporte sem a aviação comercial? Assim, os acidentes aéreos, ainda que trágicos, são socialmente aceitos ante os patentes benefícios do transporte aéreo (proporção ínfima de desastres se comparados pousos e decolagens). Já o perigo da “brincadeira” deve ser visto com outros olhos: pode causar conseqüências drásticas e não traz nenhum benefício às pessoas. Por isso há que se ter limite às atividades, sendo o caso de considerarmos que há riscos permitidos e outros não admitidos (socialmente rejeitados por precipuamente poderem ferir bens jurídicos).(7)

Outro fator a considerar: a vítima. A esta sempre foi atribuída papel passivo nos crimes, sendo mera parte sofredora dos danos causados pelas lesões típicas.(8) Todavia, houve um redescobrimento da vítima pela doutrina, atribuindo-lhe mais importância. Disso nasceu a tese da autocolocação da vítima em perigo ou risco,(9) que foi desenvolvida e aplicada inicialmente nas seguintes hipóteses: a) drogados que compartilham seringas de modo que um deles venha a óbito; b) participação em suicídio; e c) transmissão de AIDS por via sexual. Os precursores da idéia foram os alemães: em 1984 o Supremo Tribunal Federal alemão absolveu um autor de homicídio culposo que havia fornecido heroína a um viciado, que a injetou e faleceu.(10) No entendimento da citada Corte, “quem meramente incita, possibilita ou facilita tal autocolocação em perigo não é punível por um delito de lesões ou homicídio”. Em suma, o comportamento da vítima passou a ser encarado de forma dinâmica, baseada em um agir comunicativo (dinamismo em sua posição quanto aos delitos).

Atualmente é possível figurar situações que ensejam a aplicação da autocolocação da vítima em perigo: a pessoa que observa outra se afogar e tentar salvar-lhe, mas acaba por morrer; a vítima de atropelamento que se nega a receber auxílio;(11) o torcedor de um clube de futebol que invade espaço territorial da torcida adversária e é agredido.(12)

Na “autocolocação” os sujeitos ativos do delito não têm contra si a imputação dos ilícitos (ou, quando muito, têm sua responsabilidade diminuída), vez que as vítimas criaram o perigo (desnecessário) para si mesmas. Por isso, a “autocolocação” é forma de atribuir ao autor de conduta típica uma culpabilidade exacerbada, já que a vítima concorreu com a realização do risco e o delito. Entretanto um alerta: não há consenso algum sobre o tema na doutrina, sendo objeto de acaloradas discussões.(13)

É inegável que aquele que deseja experimentar as sensações de um desmaio provocado tem comportamento dinâmico ante a conduta de outrem que nele pratique a “leve esganadura”. Consideramos ainda que, embora denominada “brincadeira” estamos, na verdade, diante de um comportamento criador de risco não permitido. Assim, ao fazer uma análise objetiva de imputação de resultado, não obstante o risco presente na brincadeira e no auxílio em chegar-se ao resultado (que pode ser lesivo), não há como negar que o voluntário da experiência de desmaio dirige-se até o perigo em um agir comunicativo. Considerando ainda que os critérios indicados pela doutrina(14) para que haja a autocolocação são: (i) que a vítima tenha sob seu controle o desenvolvimento da situação perigosa (no caso, querer desmaiar e solicitar o auxílio de alguém); (ii) que a vítima possa calcular a dimensão do risco, sendo este conhecido ou cognoscível (entendemos que alguém que queria sentir “barato” por desmaiar esteja minimamente ciente de que isso — o desmaio — não é algo normal no funcionamento do corpo humano e, por isso, perigosamente estranho); e (iii) que o terceiro que preste auxílio não esteja numa posição de garante.

Concluímos que na brincadeira aqui apresentada podem estar presentes os requisitos necessários para a aplicação do critério da autocolocação da vítima em perigo. No mais, ainda restaria optar por uma de suas vertentes: a que exclui a tipicidade ou aquela que apenas prevê minoração da pena daquele que auxilia no desmaio. Como se vê, infindável a discussão.

Notas

(1) Opinião de cardiologista em “Brincadeira sem graça”, disponível em http://radarkids.uol.com.br/noticia.php?id_not=1045, acesso em 08.01.08 às 19h52min.

(2) Média de dez mortes por ano, de acordo com a Associação de Pais de Crianças Acidentadas por Estrangulamento. Vide www.jeudefoulard.com.

(3) Há, inclusive duas comunidades no Orkut, “Gosto de provocar meu desmaio” e “Brincadeira do desmaio”, respectivamente em http://www.orkut.com/Commu nity.aspx?cmm=35044859 e http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=7894464, ambos acessados em 11.01.08, às 21h47min. Também Ribeirão Preto e Sorocaba já noticiaram o mau gosto, como se vê em “Desmaio Perigoso” e “Adolescentes brincam com a morte”, respectivamente em http://www.ga zetaderibeirao.com.br/conteudo/mostra_noticia .asp?noticia=1512608&area=92020 &authent= 24459A206DEB809DFC91BBFD523996 e http://www.bomdiasorocaba.com.br/index.asp?jbd=2&id =108&mat=78522, com acessos em 08.01.08, às 20h16min. Por fim, no YouTube há mais de 420 páginas com vídeos postados por internautas (pesquisa por “faint game”). Se a busca for pelo termo em português a listagem é menor, mas nem por isso menos preocupante.

(4) CHAVES CAMARGO, Antonio Luís. Imputação Objetiva e Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Cultural Paulista, 2002, p. 69.

(5) Idem, ibidem.

(6) Fazemos indistintamente uso das expressões “risco” e “perigo”.

(7) Mesmo em atividades de boa-fé há risco. Nesse sentido, vide JAKOBS, Günther. La Imputación Objetiva en Derecho Penal. Trad. Manuel Cancio Meliá. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1998, p. 45.

(8) CHAVES CAMARGO. Op. cit., p. 158.

(9) CANCIO MELIÁ, Manuel. “La exclusión de la tipicidad por la responsabilidad de la víctima (imputación de la victima)”, in: Estúdios Sobe la Imputación Objetiva. Buenos Aires, Ad-hoc, 1998, p. 81.

(10) CHAVES CAMARGO. Op. cit., p. 159.

(11) Idem, ibidem, pp. 391, 392.

(12) PEDRO GRECO, Alessandra Orcesi. A Autocolocação da Vítima em Risco. São Paulo: RT, 2004, p. 104.

(13) Com fortes críticas ao instituto: BONET ESTEVA, Margarita. La Victima del Delito: La Autopuesta en Peligro Como Causa de Exclusión del Tipo Injusto. Trad. Alfredo Chirino Sánchez. Madrid: Ciências Jurídicas/McGrow Hill, 1999, pp. 195 e segs.

(14) PEDRO GRECO, Alessandra Orcesi. Op. cit., p. 124.



Boletim IBCCRIM nº 185 - Abril / 2008

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog