domingo, 6 de abril de 2008

A advocacia criminal e o criminalista

Roberto Delmanto [06/04/2008]


Voltaire considerava a advocacia “a mais bela carreira humana” (“Le plus bel état du monde”). Parodiando o grande filósofo, eu diria que a advocacia criminal é a mais bela especialidade da mais bela carreira humana. Porque ela cuida dos dois mais importantes bens que um ser humano pode ter, além da própria vida e da saúde: a liberdade e a honra.

Sobre a primeira, disse o tribuno paulista Américo Marco Antonio que “a liberdade, esse bem supremo, tudo merece, tudo desculpa”; e sobre a segunda, escreveu Shakespeare que “o bom nome é a primeira jóia do coração do homem”.

Mas o advogado criminalista é, em geral, mal compreendido, confundindo-se sua pessoa com a do cliente que defende, só sendo verdadeiramente entendido por quem dele vem a precisar. Não forma com o decorrer dos anos, como os civilistas, uma clientela, e seus ex-clientes, ainda que absolvidos, via de regra, não gostam de reencontrá-lo pela lembrança do que sofreram.

Discorrendo sobre esse paradoxo - a beleza da advocacia criminal e a incompreensão quanto ao seu exercício - afirmou certa vez, com rara felicidade, o saudoso criminalista carioca Antonio Evaristo de Moraes Filho: “... Temos o dever de prosseguir na batalha em defesa de nosso mais importante cliente: a liberdade individual. Sabemos que no desempenho desta missão, quer nos regimes totalitários, quer nas democracias, os espinhos sangrarão nossos pés durante a caminhada. Nas ditaduras descerá sobre nós o ódio dos senhores do poder, por defendermos os ‘inimigos da pátria’. No Estado de Direito Democrático, por ampararmos os odiados, acabaremos por partilhar com nossos clientes o opróbrio da opinião pública. De qualquer forma, não devemos desanimar, mesmo porque a história tem sido generosa conosco...”

Para os jovens advogados que, apesar dessas dificuldades e incompreensões, desejarem seguir a advocacia criminal, eu diria que só a sigam se tiverem realmente vocação, muita compaixão pelo ser humano e um grande amor à liberdade.

E repetiria o decálogo que fiz para eles há algum tempo: tenham consciência de que escolheram a mais bela das especialidades da advocacia; orgulhem-se dela e a exerçam com dignidade, não compactuando jamais com a violência ou a corrupção; advoguem com alegria, lembrando-se de que seu verdadeiro cliente e, ao mesmo tempo, sua maior causa, é a liberdade; ao decidir se aceitam patrocinar uma defesa, preocupem-se menos em saber se o cliente é inocente do que se sua consciência de advogado e ser humano permite defendê-lo; ao serem procurados para atuar como assistente do Ministério Público ou querelante, busquem certificar-se de que a pessoa que vão acusar é realmente culpada; não transformem cada defesa ou acusação em uma verdadeira guerra, onde tudo é permitido; façam valer suas prerrogativas profissionais; não se preocupem com o sucesso dos colegas, mas apenas com suas próprias causas e seus próprios clientes; dediquem-se a fundo às causas que lhes forem confiadas e procurem produzir a melhor prova possível em favor de suas teses; escolham, entre os colegas mais velhos, um que lhes sirva de modelo e inspiração.

As prerrogativas profissionais do advogado são invioláveis, pois, como disse o eminente criminalista José Roberto Batochio, ex-presidente nacional da Ordem, “o destinatário da franquia da inviolabilidade profissional é o cidadão, titular dos direitos patrocinados, não o advogado, mero intermediário”.

Embora suas prerrogativas profissionais sejam invioláveis, o advogado, e principalmente o criminalista, há de ser o primeiro a respeitar as leis e a ética. Como adverte Maurice Garçon, ele deve ser “árbitro do seu comportamento, o que o obriga a tornar-se particularmente escrupuloso. Deve conservar-se severo para consigo mesmo, a fim de manter a independência, que é o apanágio da profissão”.

Um dilema, que por vezes atinge jovens criminalistas, é saber se é justo, moral e ético defender clientes culpados. Há aqueles que se confessam culpados aos advogados que procuram; há os que se dizem inocentes e neles acreditamos, ou não acreditamos, ou, ainda, ficamos em dúvida...

A meu ver, o criminalista só deve aceitar defender um cliente - não importa seja ele culpado ou haja dúvidas a respeito - se sua própria consciência puder entender os motivos da conduta, encontrar uma justificativa psicológica, social, humana, enfim, para ela, ou até perdoá-la. A partir dessa compreensão poderá, sem remorsos ou questionamentos, assumir a causa e bem patrociná-la, tendo como limite ético intransponível não prejudicar terceiros inocentes.

Carnelutti, em seu imperdível livro “As Misérias do Processo Penal”, conta que, tendo se dedicado sempre ao processo civil, só bem mais tarde percebeu que o processo penal corria em sua vida como um rio subterrâneo que demorou a aflorar. E, ao passar a advogar na área criminal, foi nomeado por um juiz defensor de dois irmãos acusados de um brutal duplo homicídio. Um deles tinha passado impecável; já o outro contava com diversos crimes em sua existência. Pois foi justamente este que lhe pediu: “Mestre, jogue toda a culpa em mim, porque meu irmão tem família”. Foi ai que Carnelutti descobriu, naquela alma de delinqüente, algo de bom, uma pequena chama de bondade, encontrando alento para defender a difícil causa para a qual fôra nomeado.

A gravidade da acusação, o seu repúdio pela mídia e pela sociedade, não deve impedir o criminalista de assumir a defesa se a sua consciência o permitir. Como escreveu Rui Barbosa, o maior de todos os advogados, “quando e como quer que se cometa um atentado, a ordem legal se manifesta necessariamente por duas exigências, a acusação e a defesa, das quais a segunda, por mais execrando que seja o delito, não é menos especial à satisfação da moralidade pública do que a primeira”.

Na defesa de uma causa, sobretudo naquelas mais difíceis ou impopulares, o criminalista, como afirmou o grande advogado Sobral Pinto, precisa muitas vezes “ser veemente, apaixonado, causticante”. E assim o foi Mestre Sobral, entrando para a história da advocacia, ao invocar em favor de seu cliente Luiz Carlos Prestes, líder da intentona comunista preso e torturado durante a ditadura getulista, depois de recusados todos os seus pleitos e recursos, a Lei de Proteção aos Animais...

Por isso mesmo, como diz Rafael de Almeida Magalhães, “o advogado precisa da mais ampla liberdade de expressão para bem desempenhar o seu mandato. Os excessos de linguagem que porventura cometa na paixão do debate, lhe devem ser relevados”.

Mas quem melhor sintetizou a beleza da advocacia criminal e a imprescindibilidade da atuação do criminalista, foi o notável presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ribeiro da Costa, corajoso defensor da democracia durante a ditadura militar, que, em histórico acórdão, escreveu: “Só uma luz nesta sombra, nesta treva, brilha intensa no seio dos autos. É a voz da defesa, a palavra candente do advogado, a sua lógica, a sua dedicação, o seu cabedal de estudo, de análise e de dialética. Onde for ausente a sua palavra, não haverá justiça, nem lei, nem liberdade, nem honra, nem vida...”

Roberto Delmanto é advogado criminalista formado pela Faculdade de Direito da USP, foi membro do Conselho de Política Criminal e Penitenciária do Estado de São Paulo e do Ilanud (Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e o Tratamento do Delinqüente). É co-autor do “Código Penal Comentado” e das “Leis Penais Especiais Comentadas”, e autor dos livros de crônicas “Causos Criminais” e “Momentos de Paraíso - memórias de um criminalista”, todos pela Editora Renovar.


Estado do Paraná, Caderno Direito e Justiça, 06/04/2008.

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