quinta-feira, 27 de março de 2008

Entrevista - Paulo Queiroz

Paulo Queiroz, Doutor em Direito (PUC/SP), Procurador Regional da República, Professor do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), autor de livros e artigos, ex-aluno e ex-professor da UCSAL, ao jornal Réplica da Universidade Católica do Salvador.

Fale um pouco sobre sua trajetória até chegar ao Ministério Público Federal. Você sempre quis cursar Direito?

Antes de responder a isso, preciso dizer que sempre estudei em escola pública no interior: Feira de Santana (onde nasci), Iaçu (onde meu pai foi prefeito) e Itaberaba (onde meus pais vivem desde 1979); formado em contabilidade (que não tem nada a ver comigo), meu pai, que, como é natural nos pais, superestimava minha inteligência, decidiu que eu deveria estudar em Salvador (único da família, de nove filhos, a fazê-lo); queria que eu fizesse direito; já minha mãe queria que eu fizesse medicina; então, decidi fazer direito, sem saber exatamente o que queria, e me apaixonei pelo curso, aqui na Católica, especialmente pelo direito penal. Se me perguntarem hoje quais professores mais marcaram minha formação acadêmica, diria: Luiz José de Oliveira (direito penal), excelente professor e extraordinário penalista, agora aposentado; e Rubem Nogueira (introdução ao direito), professor (também aposentado) que admirava pela cultura e paixão com que ensinava, apesar da idade; ambos conservadores, mas grandes mestres.

Formado em direito, fui advogar em Iaçu e Itaberaba, tendo um pequeno escritório em ambas as cidades; ali aprendi muito, pois convivi com grandes advogados e tirava o que podia deles (Orman Ribeiro, Herber Reis etc.); refiro-me ao saber, óbvio; em Iaçu, pude enfrentar e aprender com Júlio Gusmão, que iniciava sua carreira de promotor público, hoje professor aqui em Salvador, também grande tribuno do júri; continuei estudando e logo fui aprovado em concurso para Procurador da Fazenda Estadual, tendo assumido e ido trabalhar em Barreiras; voltei, a seguir, para Itaberaba (ainda como Procurador) e retomei a advocacia; fui também aprovado em concurso para Promotor Público (nomeado para a comarca de Brotas de Macaúbas), mas preferi não assumir; por fim, aprovado que fui em concurso, assumi o cargo de Procurador da República (Ilhéus) e assim deixava a advocacia (aproximadamente cinco anos), da qual lembro com saudade (não ganhei dinheiro, mas era feliz). Faltou dizer que fui estagiário do grande José Gomes Brito, que inclusive foi Promotor Público em Itaberaba, professor de processo penal da casa, com quem muito aprendi.

E por que o magistério? Vale a pena?

Ao assumir o cargo de Procurador da República, eu realizava um velho sonho de faculdade; mas o fato é que, consumado esse sonho, senti um enorme vazio; minhas fotos da época mostram isso claramente; sentia uma certa depressão inclusive e não sabia o porquê. Foi então que decidi que devia continuar estudando e ensinar; fui para São Paulo: fiz mestrado e doutorado; e não parei de estudar desde então. Voltando a Salvador, comecei ensinando na UFBA (professor substituto); depois, UniFACS; a seguir, Católica. Superei aquele vazio a que me referi com o magistério; gosto muito de ensinar, fazer palestras, escrever; e era isso que me faltava.

Se isso vale a pena? Depende da motivação de cada um: se você tiver a pretensão de ganhar dinheiro, desista; paga-se muito mal; é quase um trabalho escravo; exceção a isso são os cursos preparatórios que normalmente remuneram bem e que pessoalmente não gosto; mas se você pretende ensinar algo, participar da formação das pessoas, fazê-las pensar, provocá-los, inquietá-los etc., vale muito a pena. Tenho muito orgulho de ver alguns grandes jovens professores hoje, sobretudo aqui na Bahia, se dizerem meus discípulos ou de algum forma influenciados por mim, como Antônio Vieira, Gamil Föppel, Bernardo Montalvão, Cleifsson Pereira etc., todos bons amigos.

Explique aos nossos leitores o que é a Lei de Crimes Hediondos e como se deu seu processo de elaboração aqui no Brasil.

A Constituição Federal já se referia aos crimes hediondos, e a lei 8.072/90 veio regulamentá-la; mas o certo é que a lei foi motivada por uma série de seqüestros (extorsão mediante seqüestro) praticados contra empresários importantes no Brasil (Medina, Diniz etc.) e com grande repercussão na mídia, que, como sempre, cobrou mais leis, mais punição, o que veio a se consumar.

Alguns autores definem crimes hediondos como sendo aquele que “objetivamente ofende mais aos bens juridicamente tutelados”. Quando um prefeito ou vereador desvia verbas de programas sociais, ou verba destinada à compra de medicamentos, não estaríamos diante de um delito muito mais ofensivo que, por exemplo, o ato de um homem bolinar uma mulher sem o seu consentimento? Quer dizer, se a definição gira em torno do bem ofendido, corrupção não deveria ser crime hediondo, mais até do que o atentado violento ao pudor?

Essa definição é extremamente vaga e daria margem a muita arbitrariedade, possivelmente. Quanto à criminalidade do poder (de governadores, deputados, prefeitos etc.), a primeira pergunta que devemos fazer é a seguinte: será que nós queremos algo diferente? Será que de fato queremos punir essas pessoas? Digo isso porque, como sabemos, no Brasil, em geral criminosos pobres vão para a cadeia e criminosos ricos fazem carreira política; “la justicia penal es como la serpiente; solo pica a los descalzos” (Oscar Romero). Apesar de tudo, elegemos e reelegemos políticos que sabidamente enriqueceram na política facilmente, desonestamente. Não acredito que rotular tais crimes como hediondos seria a solução. Problemas políticos demandam intervenções também políticas; problemas estruturais demandam soluções também estruturais. Mais leis, mais penas, mais policiais, mais juizes, mais prisões, significa mais presos, mas não necessariamente menos delitos (Jeffery). Pessoalmente sou a favor de reformas políticas radicais e já escrevi sobre isso: extinção do Senado, redução do número de deputados, abolição do voto obrigatório, financiamento público de campanha, eficientização/ democratizaçã o do controle da atividade pública etc.

Como você vê a atuação do MP em matéria penal? Parece que no lugar do Promotor de Justiça temos Promotores de Acusação, com um apetite voraz em acusar.

A intervenção do MP é uma questão importante; conheço advogados que tinham um discurso liberal, minimalista etc., e uma vez aprovado em concurso para Promotor, mudaram radicalmente. O que aconteceu? Bem, antes de mais nada, a perspectiva do advogado é diferente da perspectiva do Promotor: o advogado é liberal por dever de ofício, não pode transigir com o direito de defesa. De todo modo, parece ainda prevalecer a idéia de que o bom Promotor é aquele que contabiliza, como vitórias, as condenações e, como derrota, as absolvições. Mas essa é uma visão equivocada e tacanha, pois o MP, na defesa da ordem jurídica e do regime democrático, deve acusar responsavelmente, sem excesso, até porque em geral o excesso acaba por desacreditar a própria acusação; e quando for o caso de absolvição, deve fazê-lo sem constrangimento, inclusive recorrendo em favor do acusado, impetrando hábeas corpus etc, quando for caso. Não devemos esquecer, porém, que todos, advogados, promotores etc., estudaram nas mesmas escolas, leram os mesmos livros e têm a mesma formação técnico-jurídica, de sorte que o problema essencial reside, a meu ver, na formação acadêmica (e humanista), e não propriamente na função que se exerce.

Você acredita que a mídia é responsável pela construção deste discurso em defesa de uma maior severidade penal; discurso esse que ganha força e acaba se sobrepondo a uma idéia de Direito Penal mínimo e garantista?

A violência é um grande produto para jornais, televisões, cinema etc. Ninguém se interessa em saber, por exemplo, que, normalmente, no final de semana, as pessoas vão curtir no Farol da Barra ou Copacabana, que o sol estava maravilhoso, que crianças brincavam na areia tranqüilamente; o que importa é que, no final do domingo, um certo domingo, por volta das 18h, quando mais ninguém estava na praia, um turista foi esfaqueado e morto por um sujeito que lhe tentava roubar R$ 50,00! Tudo mais é irrelevante, não merece ser noticiado. E ficamos com a impressão de que todo final de semana centenas de pessoas são esfaqueadas e mortas por ladrões. A exceção é interpretada como regra; e o medo assume proporções alarmantes. É como dizem os jornalistas: se um cão morde uma pessoa, isso não é notícia; mas se a pessoa morde o cão, isso, sim, é notícia, isto é, noticia-se o bizarro, o grotesco. Mas não se engane: somos todos co-responsáveis por isso; a mídia não está só; ela sabe o que queremos consumir, e violência é um grande produto de consumo. Além disso, o discurso da imprensa não é muito diferente do próprio discurso acadêmico: conservador, repetitivo, acrítico, pobre.

Em que consiste o minimalismo penal? Seria possível aplicá-lo em uma sociedade com altos índices de criminalidade como a nossa?

Na verdade, no Brasil isso já existe de certo modo, embora às avessas: para os ricos e poderosos vigora o abolicionismo; para os de classe média, o direito penal mínimo; e para os miseráveis, o direito penal máximo ou direito penal do inimigo. Não proponho abolir o direito penal, até porque isso seria impossível; no máximo poderíamos abolir a legislação penal, as instituições penais oficiais (prisões, polícias etc.), mas isso não significaria abolir o direito penal como prática social, legal ou não; seria uma fraude de etiqueta: continuariam a existir, e sem nenhum controle, grupos de extermínio, justiceiros, segurança privada etc. Tem razão Ferrajoli quando diz que a abolição do direito penal oficial é uma utopia regressiva, pois, se fosse abolido, reações públicas ou privadas arbitrárias se multiplicariam. Precisamos, em verdade, desconstruir a filosofia do castigo a partir de nós mesmos, conforme recomenda Louk Hulsman.

Quem defende um direito penal mínimo (Ferrajoli, Zaffaroni, Baratta, Hassemer, Scheerer etc.) entende que é preciso trabalhar com o máximo de políticas sociais e com um mínimo de direito penal; que o direito penal é uma forma subsidiária/auxiliar de gestão política dos conflitos comunitários, não a única nem principal forma de enfrentá-los nem resolvê-los. Como dizia Alfonso de Castro, filósofo salmantino do séc. XII, o direito penal é a fortaleza e os canhões dos demais direitos, sociais inclusive.

Você tem usado muito em seus últimos textos Nietzsche, autor praticamente ignorado pelos juristas. De que modo Nietzsche pode ser importante para o direito?

Tenho que Nietzsche é um autor absolutamente fundamental para entender a sociedade contemporânea e especialmente o direito como discurso moral. Penso inclusive que todos os autores que em geral partem de Nietzsche não conseguem dar um passo além dele; recuam; retrocedem; e quem pretenda pensar o direito criticamente, tem de lê-lo obrigatoriamente. Uso-o como caixa importantíssima de ferramentas. Por exemplo, tenho defendido que o direito não existe; que não existem fenômenos jurídicos, mas apenas uma interpretação jurídica dos fenômenos. Com isso, quero dizer muitas coisas, mas principalmente que o direito não preexiste à interpretação, mas é dela resultado, ou seja, que não é a interpretação que depende do direito, mas o direito que depende da interpretação. Isto é, o que chamamos “Direito” é um conceito que remete a múltiplas relações de poder, que não estão previamente dadas, mas são socialmente construídas, mais ou menos arbitrariamente. Pergunto, por exemplo: matar uma criança pelo só fato de ser gêmea ou nascer com uma deformidade, é lícito ou não? Pergunto isso, porque o infanticídio de crianças indígenas ainda ocorre no Brasil, com a proteção da Funai, inclusive, índios que no particular apenas seguem suas tradições e costumes. Devemos permitir isso ou devemos proibi-lo? Isso é legítimo ou não? Quais são os limites do direito oficial/estatal? O que é então conforme ou contrário ao direito? Seja qual for a resposta, tudo depende do ponto de vista de que se parta. Nietzsche tinha razão, portanto: não existem fatos; existem interpretações! Pode existir algo mais atual? No entanto, não é isso que ainda hoje ensinam os nossos manuais que, ao tratarem da interpretação do direito, ficam repetindo aquela ladainha sobre métodos de interpretação, que, para mim, são absolutamente irrelevantes; no máximo, servem para justificar decisões que precedem à sua eventual adoção.

Algumas idéias que você defende em suas obras são consideradas por muitos como “revolucionárias” . É comum ouvirmos que devemos ver estas idéias como mera “distração”, como uma “curiosidade”, porque na prática não funciona desta forma; por que no direito há esta distância tão grande entre a teoria e a prática? Até quando vamos continuar neste ciclo, com um ensino conservador, voltado para concursos, sem quase nenhum compromisso com as demandas da sociedade atual? Como mudar isso?

Com freqüência, algumas pessoas, professores inclusive, criticam idéias como direito penal mínimo, garantismo etc., sem jamais terem lido uma só página sobre o assunto; não sabem do que estão falando, mas se sentem no direito de criticar. Quem realmente leu “Direito e Razão”, de Ferrajoli, um calhamaço de 1000 páginas (talvez o mais denso texto jurídico escrito nos últimos 50 anos)? Quem realmente lerá seu “Principia Iuris, Teoria do Direito e da Democracia”, em três volumes (imagino que cada um com cerca de 1000 páginas), previsto para sair proximamente, livro que vem sendo escrito há mais de 30 anos? No entanto, muitos vão criticá-lo sem nunca o terem lido.

Quanto a mim, diria que direito penal mínimo é uma realidade às avessas: a coisa que mais fiz como advogado e membro do MP foi argüir prescrição, inclusive em crime de homicídio. No Brasil grande parte dos crimes prescreve e vai prescrever por muitas razões, inclusive porque tudo hoje é crime (maltratar planta ornamental culposamente, soltar balões, molestar baleia, tirar cópia de livro, matar uma borboleta etc.). Quanto tudo é crime, nada é crime. Já o velho Montesquieu dizia que as leis desnecessárias enfraquecem as leis necessárias. Beccaria dizia algo semelhante: criar mais tipos penais não significa evitá-los, mas criar novos crimes.

O minimalismo pretende que o direito penal se ocupe apenas de condutas realmente sérias por violarem gravemente bens jurídicos fundamentais, evitando-se essa banalização. Quanto ao divórcio entre teoria e prática, isso sempre vai existir, mais ou menos, porque teoria e prática estão em níveis ou planos distintos: o dever-ser e o ser. O mapa não é o território; o cardápio não é a refeição.

Quanto ao ensino jurídico, devo dizer que ele é hoje um grande negócio e um por vezes um estelionato: pegam esses meninos (muitos frustrados, pois não gostam do que curso que fazem, e poderiam ser excelentes arquitetos, médicos, engenheiros etc.) que estão escrevendo “omissídio”, que separam sujeito do verbo por meio de vírgula, fazem com que eles repitam que “crime é fato típico, ilícito e culpável”, e prometem que vão passar num concurso para Juiz de Direito que oferece 20 vagas para 20 mil candidatos! Depois de passarem cinco longos anos de suas vidas numa faculdade, vão se submeter a um cursinho preparatório por mais alguns anos, onde vão repetir as mesmas lições e só por milagre terão sucesso num concurso público importante, isto é, que justifique todo esse investimento/ calvário.

Como mudar isso? É difícil mudá-lo numa sociedade de consumo, em que tudo ou quase tudo é movido pelo dinheiro; os alunos, não raro, já no primeiro semestre querem saber qual o cargo que paga mais (se juiz, se promotor etc.). Que dizer, o sujeito não quer ser promotor nem juiz, o que ele quer mesmo é ter os vencimentos de juiz ou promotor; mais tarde muitos serão burocratas sem nenhum compromisso com a função que exercem. Naturalmente que as editoras dançam conforme a música; não estão preocupadas em publicar bons textos, mas textos que dêem lucro, especialmente resumos. Eu mesmo já fui orientado por um profissional do mercado editorial a escrever um livro para concursos e brinquei dizendo que publicaria um com o seguinte título: “como passar em concurso público sem estudar”, pois no fundo é o que as pessoas buscam freqüentemente: passar em concurso com o mínimo ou nenhum esforço.

Por fim, gostaria de dizer que se o que proponho é utopia, lembro, com Galeano, que a utopia existe justamente para isso: para continuarmos caminhando, sonhando.

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